"O antissemitismo é uma determinada percepção dos judeus, que se pode exprimir como ódio em relação aos judeus. Manifestações retóricas e físicas de antissemitismo são orientados contra indivíduos judeus e não judeus e/ou contra os seus bens, contra as instituições comunitárias e as instalações religiosas judaicas".
Com estas palavras, a Internacional Holocaust Remembrance Aliance (IHRA), organização internacional que promove o ensino, a memória e a investigação sobre o Holocausto, define o antissemitismo, tema que voltou à baila nas redes sociais desde que o podcaster Bruno Aiub, o Monak, apresentador do Flow, defendeu a liberdade de expressão irrestrita e a possibilidade de criação de um partido nazista, nos moldes de Constituição americana. A fala provocou repúdio de instituições judaicas e descambou não apenas na demissão do youtuber, mas na abertura de uma investigação do Ministério Público de São Paulo acerca da suposta apologia ao nazismo, imputada a Aiub e ao deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), que participava do episódio.
Durante dias, o debate envolveu influenciadores, intelectuais e até o Museu do Holocausto que, pelas redes sociais, fez um convite cordial para que Monark conhecesse suas instalações, em Curitiba. Na última quarta-feira (15), foi a vez do Partido da Causa Operária (PCO) se posicionar acerca do ocorrido, com um texto intitulado “O lobby judeu por trás da censura a Monark”. A postagem – que, até o fechamento dessa reportagem, continuava no Twitter e no portal do PCO – prossegue: “Capitalistas ligados ao Estado de Israel fazem parte de uma das máfias mais perniciosas da face da Terra”.
Não é a primeira vez que grupos políticos reproduzem estereótipos nocivos associados aos judeus ou, mesmo, que defendem abertamente o fim do Estado de Israel. Em 2016, por ocasião da morte do ex-primeiro ministro israelense Shimon Peres, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) publicou um texto com os dizeres: “Morreu o genocida prêmio Nobel da Paz”, ao que a Federação Israelita do Estado do Rio (Fierj) respondeu que “poucas vezes se viu em um texto tão curto uma quantidade tão grande de mentiras e ódio”.
Quatro anos antes, o então candidato a vereador Babá, do mesmo partido, apareceu em vídeos queimando bandeiras do Estado de Israel. Consta no site da legenda um texto de 2018 abordando conflitos na faixa de Gaza, que fala em “um banho de sangue patrocinado pelo Estado genocida de Israel e seu carniceiro-mor Benjamin Netanyahu”. Um "Estado pária", de acordo com o autor do texto.
Por outro lado, em janeiro desse ano, o Movimento Brasil Livre (MBL) também se viu às voltas com a acusação de antissemitismo, não apenas por conta do endosso à fala de Monark por parte de Kataguiri no Flow, mas devido a uma postagem feita pelo coordenador do movimento, Ricardo Almeida. "Há muito antijudaísmo conspiratório circulando no mundo islâmico, mas o vínculo não é necessário. Eu mesmo não tenho qualquer laivo antissemita e desejo que o Estado de Israel seja destruído por uma grande guerra, quando a perspectiva de guerra vitoriosa contra Israel existir", escreveu ele.
Ao jornal Folha de S. Paulo, Almeida, que é muçulmano, afirmou que "rejeita peremptoriamente o antissemitismo e o antissionismo e todos os seus desdobramentos criminosos" e que o tuíte foi escrito em contexto de brincadeira. "Não pretendo a 'destruição' de Israel, mas a solução pacífica do conflito. Quanto ao MBL, a posição do movimento é bem conhecida na defesa de Israel como única democracia do Oriente Médio e de proximidade ativa com a comunidade judaica", afirmou.
Desconhecimento da história perpetua jargões vazios
A fala, contudo despertou a reação da Juventude Judaica Organizada. Em entrevista à Gazeta do Povo, o presidente da organização, Pérsio Bider, comentou o teor antissemita das falas que advogam pelo fim do Estado de Israel. “Infelizmente parte da esquerda desconhece o conflito e as realidades do Oriente Médio, repetindo jargões ultrapassados, mas históricos sobre Israel. Insistem na narrativa do 'vilão' Israel contra a 'vítima' Palestina, sem a responsabilidade de entender que não existem somente um lado vilão ou um lado vítima”, afirmou.
”Quando alguém prega a destruição de um único país no mundo e esse país é justamente o único país judaico, qual a mensagem que está querendo passar? Ser contra o governo de Israel ou alguma empresa, pessoa ou qualquer outro representante do país, não faz a pessoa antissemita, mas a partir do momento que deliberadamente critica, julga, condena, ataca e prega a destruição somente de Israel, é sim uma forma de antissemitismo”, completa o líder.
Segundo Bider, a Juventude Judaica conta com uma equipe de voluntários que se dedica a “monitorar, buscar, investigar e tabular todas as declarações e ações antissemitas”. O grupo, então, prossegue de acordo com o caso - desde uma nota de repúdio e denúncias na própria plataforma até o encaminhamento ao setor jurídico da Confederação Israelita Brasileira, à Policia Federal, ao Ministério Público Federal e Estadual a às Polícias Civil e Militar. “As denúncias são variadas, desde discursos de ódio simples, com muita desinformação e falta de conhecimento histórico, até ameaças, que são todas levadas às autoridades responsáveis”, explica o presidente.
Atos antissemitas passíveis de investigação
De acordo com o comissário da Organização dos Estados Americanos (OEA) para o Monitoramento e Combate ao Antissemitismo, Fernando Lottenberg, há um recrudescimento desse tipo de preconceito por várias vertentes, que se manifesta de formas diversas.
”Há desde a completa negação do Holocausto às negações mais ‘sutis’, que dão a entender que ‘não foi tudo isso’ ou que ‘os judeus contribuíram’, vindas de grupos neonazistas de extrema-direita. Uma outra forma são as comparações inadequadas: militantes antivacina, por exemplo, que se comparam às vítimas no nazismo. Então, você tem na extrema-esquerda estrelas de Davi sendo igualadas à suástica e uma responsabilização de comunidades judaicas do mundo todo pelo que acontece no Oriente Médio. Por conta disso, pessoas foram atacadas em Nova York e em Los Angeles. E não menos importante, há o fundamentalismo islâmico, o jihadismo que também ataca os judeus”, explica o especialista.
Segundo Bider, todos estes tipos de antissemitismo são tipificados pela legislação e são, portanto, passíveis de investigação. “Já tivemos muitos casos de denúncias que enviamos, agressores que foram chamados na delegacia e respondem processos, inclusive com muitos presos preventivamente”. Ocorre que, ainda que o antissemitismo possa ser enquadrado como racismo ou injúria racial, a lei apresenta brechas para que ataques deliberados ao povo judeu sejam interpretados como críticas legítimas ao Estado de Israel.
“Existem iniciativas para melhorar o art. 20 da lei de racismo e incluir mais condutas antissemitas, como a negação do Holocausto. Há ainda algumas iniciativas no Congresso para criminalizar o antissemitismo mas isso precisa ser apresentado e aprovado com urgência, inclusive com ênfase no discurso de ódio na internet”, explica o presidente da Juventude Judaica.
Sobre esse tema, o advogado e vice-presidente da Confederação Israelita do Brasil, Daniel Bialski, também falou à Gazeta do Povo:
“A Confederação Israelita do Brasil e todas suas federadas estão atentas e vigilantes e têm atuado para combater todo o tipo de afronta pelo país e até participando de grupos de combate ao racismo e antissemitismo pelo mundo. E, felizmente, em muitos casos, quando pretendemos tomar providências imediatas nos deparamos com órgãos policiais e até o Ministério Público - Estadual e Federal (Procuradoria da República) - determinando a abertura de investigações criminais e cíveis visando punir essas práticas”.
“No caso do Monark foi isso que ocorreu e apenas colaboramos reforçando o quanto a comunidade se sente afrontada. Em relação às absurdas, racistas e ofensivas declarações do PCO e seus dirigentes, igualmente acionaremos às autoridades competentes para abertura de investigações para apurar a responsabilidade por essas bravatas antissemitas”, declarou o advogado. Até a publicação deste texto, o MP-SP não retornou o contato da reportagem para confirmação da abertura da investigação.
Para Lottenberg, o país está no caminho de ampliar o combate ao antissemitismo de todas as vertentes ideológicas: “A definição de antissemitismo proposta pela IHRA não é legalmente vinculante, mas é operacional: oferece exemplos concretos do problema. Esse tipo de generalização que trata de um ‘Estado genocida’ é considerado antissemitismo, sim, uma vez que diz respeito aos judeus como um todo. O Brasil passou a ser um observador da IHRA e, com isso, a gente tem mais elementos para ir atrás de pessoas que façam esse tipo de afirmação”.
Segundo o diretor do Philos Project - organização que busca a cooperação entre cristãos e comunidades religiosas do Oriente Médio -, Igor Sabino, doutorando em Ciência Política pela UFPE, para que o combate ao antissemitismo avance, é preciso que saia da teia da polarização. “Pessoas de esquerda fazem questão de denunciar o ódio aos judeus na direita, mas silenciam quando isso acontece na esquerda. E vice-versa. O caso do PCO, porém, é muito emblemático. É preciso deixar claro que criticar Israel em si não é antissemitismo. Mas tentar deslegitimá-lo e usá-lo para propagar todo tipo de teoria da conspiração é sim”, explica o especialista.
“O texto do PCO, por exemplo faz exatamente isso. Pega estereótipos antijudaicos propagados pelo próprio partido nazista e substitui ‘judeus’ pelo Estado de Israel. Vejo esse tipo de antissemitismo com muita preocupação. Ele tem crescido bastante, principalmente entre jovens nas redes sociais. Não tenho dados sobre isso, mas me parece um fenômeno semelhante à popularização do antissemitismo neonazista. A diferença deste último é que o primeiro é socialmente aceito. Em alguns círculos questionar a legitimidade de Israel é sinônimo de virtude, de compromisso com a luta dos direitos humanos dos palestinos. Nada poderia estar mais longe da verdade”.
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