Quem é Marci Bowers, a cirurgiã que já fez mais de 2 mil mudanças de sexo, inclusive em menores

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Aos 66 anos, a ginecologista e cirurgiã americana Marci Bowers deveria estar desfrutando do auge da sua carreira de quase 40 anos. Afinal, ela ajudou mais de 2000 crianças a chegarem ao mundo em partos. Mas há outro lado de sua trajetória: até 2020, ela já havia feito mais de 2000 vaginoplastias, tentativas cirúrgicas de converter pênis em vagina, em pacientes transexuais, muitos dos quais eram menores de idade. Ela faz esse serviço há mais de duas décadas.

“A alegria que se dá a novos pais” com os partos, disse ela ao San Mateo Daily Journal, veículo local de sua região na Califórnia, “sinto que é similar à alegria que se dá às pessoas cujas genitálias não correspondem a seus corpos. Dar esse presente a elas é muito marcante”.

Bowers, ela própria uma transexual, está agora no olho de uma tempestade midiática desde que vazaram comunicações internas da entidade que ela preside, a Associação Mundial Profissional pela Saúde dos Transgêneros (WPATH). As mensagens, publicadas pela ONG Environmental Progress no dia 4, revelam que os membros da WPATH prescreveram tratamentos hormonais e cirúrgicos de mudança de sexo para menores de cuja capacidade de entendimento da decisão os próprios médicos duvidavam, para pessoas com transtornos psiquiátricos que provavelmente afetam a capacidade de consentimento informado, e que até ressignificavam essa exigência da ética médica para algo irreconhecível, uma “conversa contínua” em vez de um momento anterior a qualquer intervenção em que o paciente deve ter conhecimento suficiente para decidir.

Coincidentemente ou não, o Departamento de Saúde do Reino Unido decidiu na terça-feira (12) banir na Inglaterra a prescrição de drogas de bloqueio da puberdade para crianças que sofrem da disforia ou incongruência de gênero, condição psiquiátrica das pessoas que desejam mudar de sexo. O governo britânico faz uma sindicância da prescrição do chamado “tratamento afirmativo de gênero” (defendido pela WPATH) para crianças disfóricas em seu sistema de saúde público e já decidiu encerrar as atividades de seu Serviço de Desenvolvimento de Identidade de Gênero (GIDS), sediado na Clínica Tavistock em Londres, descentralizando o atendimento a pacientes com o problema.

Quem é Marci Bowers, cirurgiã e celebridade da TV 

Bowers atua na pequena cidade californiana de Burlingame, na Península de San Francisco, com pouco mais de 30 mil habitantes. Uma das primeiras médicas transexuais atuando em tratamento de disforia de gênero, ela se tornou uma profissional disputada internacionalmente. Burlingame foi escolhida em 2010 em parte por ser próxima do aeroporto, facilitando o acesso para pacientes internacionais.

A oferta das cirurgias de mudança de sexo é rara. “Há poucos de nós, dois ou três na Califórnia, provavelmente, talvez quatro”, disse ela ao jornal, em 2020. Além do processo transexualizador, que totaliza 200 procedimentos por ano, ela também oferece gratuitamente reconstrução cirúrgica de genitália para mulheres africanas vítimas de mutilação genital.

A médica elogia a cidade por ter habitantes que são “filhos amados dos anos 1960, sabe, do Verão do Amor, e quando tiveram filhos eles todos vieram morar aqui”. A referência é à série de transformações culturais do Ocidente, que no Brasil remontam especialmente ao ano de 1968, época que muitos analistas apontam como origem da “nova esquerda” e de ideias que culminaram no atual identitarismo.

Marci Bowers esteve um pouco menos à vontade entre 2003 e 2010, quando morava em Trinidad, no Colorado, cidade com apenas oito mil habitantes onde aprendeu seu ofício. A revista Westword chamou Trinidad de “capital planetária” da cirurgia de mudança de sexo em 2008, mas não apenas por causa de Bowers, que à época estrelou uma série de TV com seis episódios sobre sua prática. A cidade também foi o lar de Stanley Biber (1923-2006), cirurgião considerado um dos pioneiros do procedimento, com mais de 3.500 cirurgias realizadas. Biber fez a primeira cirurgia de mudança de sexo em uma pessoa adulta em 1969, e enxergava Bowers como sua pupila protegida, que continuaria seu legado. Apesar da fama, Trinidad tem uma comunidade mais conservadora. Em 2005, dois sacerdotes cristãos circularam um abaixo-assinado para fechar a clínica de Bowers, sem sucesso.

A presença midiática de Bowers tem longa data. Em 2007, foi entrevistada pela famosa apresentadora Oprah Winfrey. Ela faz aparições no reality show “I Am Jazz” (“Eu sou Jazz”, do canal TLC), que acompanha a vida da transexual Jazz Jennings, 23 anos, que quando criança foi posta sob o efeito de bloqueadores de puberdade e fez sua primeira cirurgia genital aos 19 anos. A cirurgia não deu muito certo porque o bloqueio puberal fez com que Jennings desenvolvesse pouco tecido genital. Em 2020, chamou a atenção do público uma cena em que, na segunda cirurgia corretiva, Bowers bate boca com o colega cirurgião Jess Ting ao lado da paciente desacordada.

Ting discordou da decisão de Bowers de cortar um tecido de cicatriz. “Vamos ter que chegar a um acordo”, rebateu Bowers, “vai ter que ter uma pilota só aqui”. Ting treplicou “ora, Marci, somos dois cirurgiões aqui, ambos temos opiniões. Não há piloto aqui, há dois cirurgiões. Não vamos começar esse jogo”. A colega insistiu que ele estava tentando tomar controle. “Não se trata de ego, mas de fazer o melhor pela paciente”, insistiu Ting. “E é para isso que estou trabalhando”, arrematou Bowers, “se você acha que não é verdade, então vamos precisar nos afastar daqui”. A própria Jennings descreveu o resultado, ainda que de forma bem-humorada, como uma “colcha de retalhos”.

Em 2022, Marci Bowers foi uma das entrevistadas para o documentário “O que é uma mulher?”, da empresa conservadora Daily Wire. Em resposta à pergunta do título do documentário feita pelo apresentador Matt Walsh, Bowers se saiu melhor que outros entrevistados, tentando oferecer uma definição de “mulher” como “uma combinação de atributos físicos e o que se mostra para o mundo, de pistas de gênero que se oferece, que se espera que correspondam à sua identidade de gênero”. Outros usaram uma definição mais circular, de que seria mulher quem se sente mulher.

Aos 19 anos, Bowers decidiu deixar sua cidade natal de Oconomowoc, no Wisconsin (centro-nordeste dos EUA) e cruzar o país de carona em direção a San Diego, na Califórnia, para fazer sua transição de gênero. Na época, não tinha dinheiro para a cirurgia. Ela foi membro temporariamente da Igreja da Unificação, uma denominação cristã fundada pelo coreano Sun Myung Moon, de onde se desligou chamando a entidade de “seita”. Depois, voltou para perto de sua terra natal e cursou medicina na Universidade de Minnesota, onde se destacou como líder estudantil.

“Você tem que ter cuidado a cada passo, ou vai afundar” 

Em 2007, o jornal The Times of Western Indiana estimou a renda anual de Bowers em US$ 1,6 milhão de dólares. Se ela ainda cobra o mesmo preço por cirurgia daquela época, sua renda hoje, com correção para inflação, seria o equivalente a mais de R$ 26 milhões de reais por ano, na cotação atual. Falando ao jornal, o então prefeito de Trinidad, Joe Reorda, disse que a comunidade tinha “muita sorte de tê-la” como cidadã. Até os hotéis locais lucravam com as visitas constantes dos pacientes. O pastor Terry Keith, um dos autores da petição, não concordava com o prefeito. “Nossa reputação como capital da mudança de sexo no mundo trouxe vergonha e opróbrio para a comunidade”, disse.

“Eu confiei nela porque eu sabia que ela era ‘uma de nós’, eu sabia que ela era transgênero”, disse ao Times a paciente Sabrina Taraboletti. Marci Bowers completou sua transição em 1997. “A transição é como andar sobre folhas de vitória-régia”, refletiu a cirurgiã dez anos depois. “Você tem que ter cuidado a cada passo, ou vai afundar. Exige muito dinheiro, coragem e bastante planejamento. Fico feliz em ajudar”.

Para Matt Walsh, Bowers disse que a cirurgia de mudança de sexo é uma “barganha faustiana”, fazendo uma referência ao famoso personagem Fausto, da lenda germânica reescrita como peça por Johann Wolfgang von Goethe no século XVIII. A peça é uma tragédia em que o protagonista faz um pacto com Mefistófeles, uma figura demoníaca, trocando sua alma por conhecimento e prazeres mundanos. No fim, Fausto vai para o céu porque, mesmo que tenha perdido a aposta para Mefistófeles — que teria que lhe proporcionar um momento transcendente na Terra —, Deus ganha a disputa pois isso só fora possível pela realização de boas ações.