Com o avanço dos testes do Real Digital, o Drex, algumas questões a respeito de seu modelo seguem sem resolução. Uma delas, relaciona-se à dependência que a moeda digital nacional terá de servidores ou serviços que as grandes empresas tecnológicas internacionais, as Big Techs, fornecem e que já estão amplamente integrados ao sistema bancário nacional.
O Drex está sendo construído a partir da tecnologia blockchain, que descentraliza o armazenamento das informações em sua própria rede, fazendo com que não seja necessário um único servidor físico para guardar todas essas informações.
Para funcionar desta forma, as redes blockchain utilizam a capacidade de armazenamento e processamento das máquinas de seus usuários ou de seus sistemas de computação em nuvem para realizar e armazenar as operações que nelas são feitas.
No sistema do Drex, isso não significa que, por exemplo, o celular ou computador das pessoas serão utilizados pela rede. Além do próprio Banco Central do Brasil (Bacen), a rede contará com diversas instituições, financeiras e tecnológicas, que funcionarão como os pontos ou nós, como são chamados, para sua sustentação.
Segurança, suporte e agilidade na nuvem
Uma primeira preocupação em relação ao Drex é se as instituições que servirão de nós para a moeda digital têm seus serviços alocados em sistemas de computação de nuvem das Big Techs.
“A depender de quais são os nós, conseguimos entender quem terá maior parte do ‘controle’ sobre a rede”, afirma Victor Valente, advogado especializado em tecnologia e presidente da Comissão de blockchain e cripto ativos da OAB de Niterói.
“Hoje, uma das maiores críticas às blockchains públicas descentralizadas, por exemplo, é a de que elas não seriam de fato descentralizadas, pelo argumento de que mais de 51% dos nós estariam rodando em serviços de cloud”, disse.
Tatiana Orofino, Líder de desenvolvimento de negócios para setor financeiro da AWS Brasil, explica que a computação em nuvem é uma grande aliada dessas instituições, pois oferece segurança com conformidade, resiliência, escalabilidade e elasticidade.
“A disponibilidade de serviços na nuvem apoia a inovação, pois eles podem ser utilizados a um custo acessível a qualquer empresa. Além da infraestrutura, a AWS dispõe de especialistas em áreas-chave para o desenvolvimento e implementação de uma rede de sistemas responsável por suportar o lançamento do Drex e de produtos relacionados".
No caso do Drex, Valente afirma que a questão do uso da nuvem/cloud será crítica para uma análise futura, quando o Bacen determinar quais entidades serão os nós do sistema.
“Estipulados os nós que terão permissão para rodar a rede blockchain que será utilizada no Brasil, haverá alguma regulação em relação a que tipos de serviços de cloud poderão ser utilizados?”
As camadas do Real Digital e as Big Techs
Além do percentual de participação das Big Techs no Drex, o nível da estrutura do sistema em que elas estão inseridas também é um fator que deve ser observado. Assim como outras moedas e produtos digitais, o sistema do Drex é esquematizado em diversas camadas que designam as instituições e suas funções dentro da rede.
Pedro Magalhães, desenvolvedor especialista em Blockchain e cofundador da Iora Labs, empresa que faz verificação de contratos digitais, afirma que, no Drex, a atuação das gigantes da tecnologia ocorre desde as primeiras camadas.
“Na topologia do servidor, que é um mapa da estrutura do Drex, a primeira camada já traz as Big Techs, onde estão as operações bancárias, as operações da B3, por exemplo. Todas elas têm Big Techs. Todas, sem exceção”, disse.
A topologia foi publicada pelo Bacen no repositório central do GitHub, uma plataforma para desenvolvimento e compartilhamento de softwares, juntamente ao pacote de programação do Drex, no dia 3 de julho deste ano.
Big techs nas operações intrabancárias do Drex
Na base de todo o sistema está o Banco Central do Brasil, na Camada de Liquidação, que é onde os bancos têm integração direta com a blockchain do Real Digital. Nela, o Bacen já prevê a integração com as Big Techs, como Microsoft ou AWS (Amazon Web Services, que, como o nome indica, pertence à Amazon), que serão as intermediárias responsáveis por sua conexão com os demais bancos.
Essa função está designada na camada seguinte, a da interoperabilidade, onde figura a Microsoft. A atribuição é agir “como uma ponte, facilitando a comunicação e a transferência de dados entre diferentes plataformas e sistemas, garantindo uma operação rápida e eficiente”.
Ou seja, Big Techs como Microsoft e AWS estão no centro de todo o fluxo de informações entre o Bacen e as outras instituições que irão compor o sistema do Drex.
“Há funções das Big Techs que conseguem extrair e transacionar as informações. O canal da Microsoft [e de outras Big Techs] consegue integrar o Banco Central a um banco privado normal, ou seja, serve como um intermediário que facilita a comunicação de todos ali”, disse Magalhães.
Big Techs já estão presentes nos testes do piloto do Real Digital
Para participar do projeto piloto do Drex, ao todo, o Bacen selecionou 14 instituições e consórcios entre grandes bancos brasileiros como Bradesco, Itaú Unibanco, a bolsa B3, um consórcio de cooperativas de crédito liderado por Sicoob e Sicredi, a operadora de investimentos XP e a Associação Brasileira de Bancos (ABBC).
Alguns dos consórcios já indicam a participação ativa das Big Techs, como no caso do grupo de fintechs liderado pela Tecban que traz a AWS, e da Associação Brasileira de Bancos (ABBC) que conta com o apoio da Microsoft. A empresa também fazia parte de um consórcio com a Caixa Econômica Federal e a Elo, que não foi selecionada para o piloto.
No caso da AWS, Tatiana afirma que a empresa, em conjunto com as associadas, “irá testar funcionalidades de privacidade e programabilidade”. Para tanto, farão a simulação de um caso específico, a liberação de títulos públicos federais entre clientes de instituições diferentes mediante sua liquidação financeira.
“Esse caso de uso permite dar foco aos testes com privacidade, uma vez que promove a troca de informação entre os vários participantes da plataforma, e testa ainda o processamento dos serviços oferecidos e sua interoperabilidade — capacidade de um sistema de se comunicar de forma transparente com outro sistema”, afirmou.
Serviços das Big Techs são a base de aplicações bancárias e financeiras
Por abrigar os serviços digitais de outras selecionadas para o piloto do Drex, a AWS também deverá participar e dar suporte para os testes que essas instituições eventualmente realizarem.
Dentre essas empresas, pode-se listar, por exemplo, o Itaú Unibanco e a própria B3, ambos usuários dos serviços de computação em nuvem da AWS. “Segundo demonstrado publicamente, a maior parte do sistema da B3 é construído na computação em nuvem da AWS, eles não têm uma camada em que a AWS não esteja”, afirma Magalhães.
Da mesma forma, o Itaú desenvolve seus produtos com a empresa. “O Itaú fechou em 2020 uma parceria de dez anos com a Amazon Web Services (AWS) para que a empresa seja a provedora de Cloud do banco. Temos modernizado a plataforma tecnológica e migrado boa parte de nosso legado para Cloud desde então”, afirmou a assessoria do banco em nota.
Valente afirma que recorrer aos serviços das Big Techs é bastante comum. “O que acontece normalmente é que é muito custoso ter hardwares funcionando para rodar os nós, daí porque muitas empresas alugam clouds como a da AWS”.
“Segundo dizem, não temos mão de obra e know how especializado para isso — muito provavelmente em razão da falta de atenção dos órgãos públicos para as necessidades de desenvolvimento tecnológico ao longo dos anos — e, em tese, diminuímos os riscos tecnológicos adotando soluções de Big Techs e empresas consolidadas”, afirma.
O descaso ou falta de eficiência pública e privada para o desenvolvimento de soluções nacionais, no entanto, não é a única razão para a predominância das Big Techs. “Muito da mão de obra qualificada no Brasil é treinada desde dentro das universidades nos sistemas das Big Techs”, afirma Magalhães.
“Não é simplesmente estar dentro do servidor dele, toda a estrutura para aquela aplicação foi gerada em conformidade com o padrão do servidor dele”. A influência dessas empresas é tão grande que, na maior parte das vezes, nem chega a ser questionada.
“Quase todas as empresas usam esses serviços de cloud terceirizados, então dificilmente vemos elas questionando isso. De certa forma, ficamos reféns dessas soluções, e o mercado é cada vez mais dominado por poucos players internacionais”, disse Valente.
Presença no Brasil, sanções e resets
Magalhães afirma que, enquanto outras nações desenvolvem seus próprios sistemas, o Brasil não age dessa forma, se tornando dependente das empresas de tecnologia estrangeiras e de possíveis sanções internacionais.
Em março de 2022, a Microsoft suspendeu novas vendas de seus serviços para a Rússia. Na ocasião, afirmou que o impacto da medida seria pequeno, já que o país representava menos de 1% da receita total da empresa, conforme reportado pelo jornal The Washington Post.
Uma semana depois, a AWS também deixou de aceitar negócios com clientes baseados na Rússia e na Bielorússia. “Ao contrário de outros fornecedores de tecnologia dos EUA, a AWS não tem data centers, infraestrutura ou escritórios na Rússia, e temos uma política de longa data de não fazer negócios com o governo russo”, disse a empresa.
Presente no Brasil desde 2011, a AWS conta com escritórios próprios em São Paulo e no Rio de Janeiro, operando em acordo com as leis locais. A empresa ainda mantém uma localização geográfica, chamada de Região AWS, com um cluster de data centers no país.
Cada Região AWS é composta por pelo menos três locais conhecidos como Zonas de Disponibilidade (AZ), infraestruturas geograficamente separadas e com distância suficiente para reduzir os riscos de um único evento ter impacto na disponibilidade do serviço. No Brasil, eles estão em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Fortaleza.
De acordo com Tatiana, os clientes podem escolher em que Regiões e AZs querem se cadastrar, sendo que a AWS os auxilia a atender às leis e regulamentações dos países em que estão e a alcançar os mais altos padrões de segurança, privacidade e resiliência.
Segundo Valente, atentar para a dominância das Big Techs torna-se cada vez mais importante. “Alguns vão dizer que é preciosismo, mas é um ponto de risco que na minha opinião não pode ser deixado de lado. Vivemos em uma sociedade de tecnologias cada vez mais disruptivas e com riscos cada vez menos previsíveis. Fato é que a soberania dos Estados está cada vez mais sendo compartilhada com as Big Techs’.
Até o fechamento desta reportagem, o Banco Central do Brasil não havia respondido aos questionamentos enviados.
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