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Efeito colateral

Os remédios de Bolsonaro realmente causam confusão mental?

Na Superintendência da Polícia Federal em Brasília, Bolsonaro disse que remédios lhe causaram confusão mental. (Foto: EFE/ Isaac Fontana)

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 No sábado (22), o ex-presidente Jair Bolsonaro foi preso preventivamente – dentre outros motivos, por ter tentado violar a tornozeleira de monitoramento eletrônico.

Um vídeo gravado pela Polícia Federal mostra Bolsonaro admitindo ter tentado abrir o aparelho utilizando um ferro de solda. 

Os médicos do ex-presidente emitiram uma nota afirmando que ele estava apresentando confusão mental possivelmente atribuída à introdução de um novo medicamento, a pregabalina. Bolsonaro já fazia uso de outros psicotrópicos, como gabapentina e clorpromazina. Por ordem médica, o ex-presidente parou de consumir a pregabalina depois do episódio. A medicação é a principal suspeita de ter causado as alterações no estado mental. 

O próprio Bolsonaro apresentou uma versão semelhante durante a audiência de custódia, logo após ser preso. Por esse motivo ele teria tentado mexer na tornozeleira usando ferro de solda e alegado “curiosidade”.  

Mas será que esse remédio novo, ou a mistura dele com os outros, pode realmente deixar alguém confuso a ponto de cometer atos sem sentido? E o que a ciência diz sobre isso? 

Para quê servem esses remédios? 

Pregabalina, gabapentina e clorpromazina têm objetivos e meios de ação diferentes.  

A pregabalina e a gabapentina (às vezes chamadas de “gabapentinoides”) foram desenvolvidas originalmente para epilepsia, mas hoje são usadas com frequência para amenizar dores, transtornos de ansiedade e, em alguns casos, como complemento em crises convulsivas.  

Como efeitos colaterais, a pregabalina pode ocasionar tontura, sonolência e, em casos raros, confusão e alucinações. A gabapentina tem praticamente os mesmos efeitos colaterais, como sonolência, ataxia (dificuldade para coordenar a marcha) e confusão cognitiva em alguns pacientes.  

A semelhança entre pregabalina e gabapentina vem do mecanismo: ambos modulam canais de cálcio dependentes de voltagem nos neurônios, reduzindo certa excitação nervosa, útil na dor neuropática, mas capaz de prejudicar a clareza mental quando combinados com outras drogas. 

A clorpromazina, por sua vez, é um antipsicótico clássico, usado há décadas para controlar agitação, náuseas intensas e quadros psicóticos. Ela é conhecida por provocar sedação intensa e efeitos anticolinérgicos, que podem causar boca seca, queda de pressão e confusão. Em pacientes vulneráveis, pode induzir desorientação e delírio.  

Um quadro psicótico é uma situação em que a pessoa perde, total ou parcialmente, o contato com a realidade, passando a apresentar alucinações, como ver ou ouvir coisas que não existem, delírios (que são crenças falsas mantidas com convicção) e pensamento ou comportamento desorganizado, que tornam difícil manter coerência, lógica e orientação no cotidiano. Nesses episódios, também podem surgir alterações emocionais e cognitivas, como dificuldade de concentração, fala desconexa ou reações inadequadas ao ambiente. A psicose se diferencia da simples confusão mental porque afeta diretamente o conteúdo do pensamento, embora ambas possam ocorrer ao mesmo tempo.

As bulas dos remédios dizem que o risco de confusão mental aumenta quando dois ou mais medicamentos com efeito depressor do sistema nervoso central são combinados, ou quando há início rápido de dose, retirada abrupta, insuficiência renal que altera a eliminação do remédio ou ainda um estado clínico vulnerável (sono ruim, infecção, desidratação, consumo de álcool). 

“Farmacocinética” e “farmacodinâmica” na interação medicamentosa 

A chamada farmacocinética é a forma como o corpo lida com o remédio: absorve, distribui, transforma e elimina. Quando não há interação farmacocinética entre dois fármacos, isto significa que um não altera significativamente a concentração do outro no sangue. Já a farmacodinâmica é o que os remédios fazem no organismo: seus efeitos e como esses efeitos se somam ou se opõem. Se dois medicamentos deprimem a atividade cerebral, o impacto pode ser aditivo mesmo sem alteração de níveis séricos. 

No caso da pregabalina e da clorpromazina, o risco relevante é farmacodinâmico — os efeitos sedativos se somam, aumentando tontura, sonolência e confusão. Quando médicos e a defesa dizem que a “mistura” teria provocado a confusão do ex-presidente, a alegação se apoia nesse princípio. Pregabalina e gabapentina causam sonolência, tontura e alterações de atenção, a clorpromazina é sedativa. Já a sobreposição desses efeitos pode tornar o paciente desorientado, sonolento demais ou levar a comportamentos estranhos.  

Bancos de dados de interação, guias clínicos e documentos regulatórios alertam para o aumento de efeitos como dificuldade de concentração, confusão e sonolência quando antipsicóticos sedativos são combinados com gabapentinoides — em termos diretos: dois sedativos juntos costumam produzir efeito sedativo maior. 

Evidência científica 

Além das bulas, artigos científicos trazem relatos de caso documentando que a pregabalina, às vezes sozinha, às vezes combinada com outros psicotrópicos, pode induzir delírio, psicose transitória e alucinações.

Embora esses relatos sejam raros, eles estão publicados em revistas médicas: há descrições de delírio e alucinações visuais que cessaram com a retirada da pregabalina; relatos de alucinações após aumento de dose que se resolveram ao suspender o medicamento; e documentação de delírio associado tanto ao início quanto à retirada abrupta da pregabalina. Em resumo, a literatura clínica reconhece esses eventos, e vários casos relatados mostram resolução após mudança no esquema. 

Convém esclarecer um ponto: muitos desses relatos envolvem pessoas idosas, com múltiplas doenças e polimedicação. Isso torna difícil atribuir causa única a um remédio. Na medicina, a relação temporal — sintoma que surge depois do início ou aumento de dose e melhora quando o remédio é suspenso — é um critério que sugere associação, mas não prova causalidade absoluta. Por isso, no caso de Bolsonaro, informações clínicas detalhadas, como o horário das doses e o resultado de exames complementares são fundamentais para um laudo definitivo. 

Clinicamente, diante de um episódio assim, médicos geralmente suspendem o remédio suspeito e investigam outras causas físicas, como infecção, alterações metabólicas, uso de álcool ou combinação com outras drogas, porque tratar a causa subjacente costuma reverter o quadro.  

Outra sutileza é a velocidade de ajuste: em muitos relatos, eventos adversos surgiram após “titulação rápida” — aumentos de dose em pouco tempo — ou após iniciar um novo remédio sem reduzir o anterior. Essas mudanças bruscas são perigosas porque o organismo não tem tempo de se adaptar. Além disso, a retirada abrupta de pregabalina também tem sido associada ao delírio; paradoxalmente, tanto começar quanto interromper podem provocar desconforto neurológico se mal planejados. A lição é que mudanças em psicotrópicos exigem ritmo e monitoramento. 

Casos de delírio com pregabalina 

A literatura médica traz relatos de pacientes que desenvolveram delírio com alucinações visuais após iniciar pregabalina, com reversão do quadro depois da suspensão. Há relatos de alucinações que surgiram após aumento de dose e desapareceram com a interrupção do medicamento. 

Em 2012, um grupo liderado por um pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) publicou artigo retratando um caso em que uma paciente com dor lombar desenvolveu delírio, psicose e alucinações visuais após o uso de pregabalina. Ao suspender o remédio, os sintomas reverteram, e os autores alertaram que “estado confusional agudo, psicose e alucinações visuais devem ser considerados efeitos da pregabalina”.

Em 2020, pesquisadores do Reino Unido descreveram um caso com alucinações visuais e agitação após aumento de dose, com resolução completa após retirada. Outro estudo, publicado em 2021 por especialistas do Hospital Universitário de Konya, na Turquia, também relatou delírio após retirada abrupta em paciente idoso. Esses casos foram revisados e publicados em periódicos acadêmicos.

Não significa que toda pessoa que tome pregabalina verá alucinações. Significa que existe uma associação plausível e documentada, que justifica cautela. 

Pressão emocional, soluço constante e privação de sono  

 A equipe médica que visitou o ex-presidente na manhã de domingo (23), na Superintendência da Polícia Federal em Brasília, informou que Bolsonaro é portador de múltiplas comorbidades e faz uso de diversos medicamentos desde as cirurgias e internações iniciadas em 2018 em decorrência da facada.  

Na nota oficial, os médicos Claudio Birolini, cirurgião-geral, e Leandro Echenique, cardiologista, registraram que ele apresentou pneumonia por broncoaspiração, mantém crises de soluços refratários e relatou, na noite de 21 de novembro, um quadro de confusão mental e alucinações “possivelmente induzidos pelo uso do medicamento pregabalina”, receitado por outra médica, sem conhecimento da equipe.  

O texto destaca que a pregabalina “apresenta importante interação” com a clorpromazina e a gabapentina, usadas regularmente por Bolsonaro, e que seus efeitos colaterais reconhecidos incluem confusão, desorientação, sedação, transtorno de equilíbrio e alucinações. A equipe afirma que o medicamento foi suspenso imediatamente e que, no momento da avaliação, não havia sintomas residuais. 

Como a medicina não é ciência exata, efeitos colaterais podem gerar interpretações equivocadas entre leigos. Embora a pregabalina seja considerada segura e reações como alucinações sejam raras, fatores como idade, estresse prolongado, privação de sono — agravada pelas crises de soluço — e o risco contínuo de broncoaspiração podem aumentar a vulnerabilidade a episódios de desorientação.  

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