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A ideia soviética de criar um Estado judeu tinha, por incrível que pareça, raízes antissemitas. E, como todo planejamento centralizado, deu errado.
A ideia soviética de criar um Estado judeu tinha, por incrível que pareça, raízes antissemitas. E, como todo planejamento centralizado, deu errado.| Foto: Wikipedia

Ao contrário do que se poderia imaginar, a maior menorá do mundo não está em Jerusalém ou Tel-Aviv, muito menos em algum lugar do Brooklyn. Ela pode ser encontrada numa cidade russa no meio da Sibéria, quase na fronteira com a China, a 6000 quilômetros de Moscou. Quem se aproxima de Birobidjan, uma cidade de 75 mil habitantes às margens do rio Amur e da ferrovia transiberiana, pode ver se longe o gigantesco candelabro de 21 metros de altura e nove lâmpadas de 500 watts que adorna sua praça principal.

Essa é a capital do primeiro Estado judaico moderno – que, ao contrário do que muitos pensam, não é Israel. Tal honra coube ao Oblast (algo como “região” ou “província”) Autônomo Judaico, uma pequena republiqueta criada pelas autoridades soviéticas na década de 1930 no meio da taiga siberiana, sobre um território constituído em boa parte por pântanos e florestas impenetráveis. Até sua criação, os poucos habitantes da região eram cossacos e alguns poucos fazendeiros e madeireiros. Com o fim do Império Russo e a revolução que deu origem à União Soviética, porém, o Partido Comunista logo teve outros planos para aquele pedaço isolado do meio do nada.

A jornalista russo-americana Masha Gessen, uma ativista política judia, descreveu a República Autônoma Judaica como “uma das piores boas ideias de todos os tempos”. Ela conta que a iniciativa foi parte do experimento soviético. “A União Soviética inicialmente se concebeu como uma espécie de império anti-imperialista, no qual cada nação tinha o direito à autodeterminação e a algum tipo de autonomia. E os judeus, que antes viviam no ‘Pale’ (a zona de assentamento judeu nos territórios do Leste Europeu) e tinham seus direitos civis extremamente limitados, tinham que ser emancipados como os outros povos e conquistar sua própria autonomia. Então, do ponto de vista soviético, foi uma tentativa de fazer com que os judeus se tornassem como todos os outros grupos étnicos que viviam na União Soviética.”

Nos anos que se seguiram à Revolução, os judeus eram uma das minorias mais marginalizadas da recém-criada União Soviética. Em 1924, a taxa de desemprego entre eles era de 24%, tanto como resultado dos inúmeros pogroms e perseguições a que foram submetidos durante o período czarista, quanto por decorrência das próprias políticas desastradas soviéticas, que desestimulavam artesãos e pequenos comerciantes – justamente duas das principais ocupações dos judeus.

Ao mesmo tempo, o sionismo tomava o lugar do marxismo entre os judeus de esquerda como ideologia preferida. O antissemitismo, que já permeava há séculos a sociedade russa (uma frase corriqueira tanto durante a Primeira quanto a Segunda Guerra era que “enquanto Ivan lutou no front, Abram se escondeu em Tashkent”), gradualmente passou a ser substituído pelo antissionismo. Operários eram obrigados a assistir palestras sobre os males do nacionalismo judaico e as autoridades soviéticas não escondiam seu receio de que houvesse um êxodo das populações judaicas caso uma nação viesse a ser fundada onde hoje é o Estado de Israel.

Estratégia geopolítica

Como forma de lidar com este problema, os líderes do Partido Comunista criaram o Komzet, um “Comitê para o Assentamento dos Judeus que Trabalham no Campo”, para tentar fazer com que eles não só voltassem a ser “membros produtivos da sociedade” como também contribuíssem para a prosperidade do país. Inicialmente alguns distritos exclusivos para judeus foram criados na Crimeia e na Ucrânia, mas outra solução, menos custosa e com algumas vantagens geopolíticas e estratégicas foi desenvolvida.

O governo queria algum tipo de estímulo para desenvolver a região da fronteira com a China, habitada apenas por um punhado de cossacos, imigrantes coreanos, cazaques e povos nativos. Além de proteger o território de possíveis invasões, os soviéticos precisavam desesperadamente de uma alternativa para o escoamento de mercadorias para dentro e fora da região da Sibéria. O rio Amur, que marca a fronteira entre a Rússia e a China, e desemboca no Pacífico, era exatamente a solução.

Os soviéticos teriam assim uma opção adicional, além dos já familiares portos do Mar Negro, sempre sujeitos ao controle do Império Otomano, que controlava o Estreito do Bósforo, e os do Mar Báltico, sujeitos ao controle dos países bálticos, escandinavos e do eterno inimigo alemão. De quebra, o transporte de mercadorias por um porto na costa soviética do Pacífico serviria como estímulo para desenvolver aquela região do país.

Já numa entrevista de 1926 para Elias Tobenkin, correspondente do New York Herald Tribune, o presidente do Soviete Supremo, Mikhail Kalinin, disse: “Gostaria de ver uma república judaica fundada na Rússia, na Sibéria. Não precisa ser uma república muito grande – meio milhão de pessoas já seria o bastante. E tampouco esse meio milhão de pessoas precisam ser exclusivamente agricultores. Uma república judaica como essa poderia muito bem ser uma mistura de camponeses, artesãos e operários capacitados. Tenha em mente que não tenho intenção de impor aos judeus uma república distinta; é exclusivamente por amizade que estou propondo isso. O governo soviético está encorajando cada uma das 120 nacionalidades que vivem sob o seu emblema a manter seu caráter e idioma nacionais, bem como sua cultura, se assim desejarem. Pessoalmente, sou um entusiasta das qualidades da raça hebraica. Gostaria que esta raça fosse poupada do extermínio. Mas, a menos que um centro judaico como este que estou propondo seja fundado dificilmente haverá algum judeu na União Soviética, daqui a cinquenta anos”.

O próprio Stalin já tinha abordado, num livro de 1913, a questão de como conciliar o judaísmo com a noção de fidelidade patriótica: para ele, “uma nação é uma comunidade estável e constituída historicamente por um povo formado com base numa língua, território, vida econômica e composição psicológica comuns, manifestas numa cultura comum. (...) Somente quando todas estas características estão presentes é que existe uma nação”. Ainda para Stalin, os judeus eram um povo que tinham sido uma nação, mas se diluíram e se tornaram indignos de terem sua própria autonomia, e seu único destino aceitável era serem assimilados pelas nações que lhes abrigassem.

Ingratos ou incapazes

A criação de um Estado judaico soviético serviria para tirar o ímpeto dos sionistas e dos militantes nacionalistas judeus. Se os judeus reclamassem, seriam tachados de ingratos; se fracassassem no intento de cuidar de seu território, seriam definitivamente provados como incapazes. Ademais, qualquer um que não gostasse da ideia seria mandado para a Sibéria de qualquer maneira; estarem numa república judaica na própria Sibéria só tornaria tudo mais fácil.

Boris Bruk, um dos principais agrônomos do país e encarregado de chefiar o Comzet, liderou uma expedição ao local onde 4,5 milhões de hectares foram separados para a futura província. (O pobre Boris acabou preso e deportado para o Cazaquistão menos de uma década mais tarde). Em abril de 1928, os primeiros imigrantes começaram a chegar e, alguns anos depois, já havia três escolas em nove povoados, em sua maior parte habitados por judeus. O iídiche rapidamente se firmou como o idioma local e diversos jornais locais o utilizavam. A principal rua da capital recebeu o nome do maior autor da língua, o dramaturgo Shalom Aleichem (nascido na Rússia).

Tornar o iídiche, e não o hebraico, a língua oficial da região foi algo que desde o início diferenciou o Oblast Judaico de Israel e dos imigrantes que já naquela época fugiam da perseguição na Europa para a Terra Santa. O iídiche, idioma germânico fortemente influenciado pelo hebraico, e tradicionalmente falado pelos judeus da Europa, corria o risco de desaparecer justamente pela perseguição sofrida por aqueles que o falavam. Mas ele era um idioma acima de tudo oral – ainda não existia uma literatura iídiche, e tampouco ele era usado para se falar de cultura ou ciência. E isso foi um atrativo para os arquitetos deste experimento.

Nas palavras de Masha Gessen, o iídiche “não era um idioma cultural. Então a ideia em si – e que estava em sinergia com todo o pathos da Revolução Bolchevique – era a de criar cultura a partir de coisas que até então tinham sido desprezadas.”

Fracasso inevitável

As condições de vida eram terríveis na recém-criada república. Em outubro de 1928, metade da população já tinha abandonado devido às condições terríveis. Invernos congelantes e verões sufocantes, repletos de mosquitos e doenças contagiosas, um terreno infértil e pantanoso longe de tudo e todos. O fracasso da empreitada era inevitável.

Um visitante americano comentou em 1929 que “a colonização de Birobidjan foi feita e executada sem qualquer preparo, planejamento e estudo”. O governo parecia tratar tudo com uma leveza ou um descaso que beiravam a crueldade: fontes estilizadas que simulavam o hebraico eram usadas nos edifícios públicos e a criação de um açougue suíno foi anunciada com orgulho pelas autoridades soviéticas. Os judeus que podiam iam para a Palestina, para algum vilarejo na Ucrânia, ou até mesmo tentavam simplesmente disfarçar sua herança religiosa e cultural; a última opção era o se enfiar no meio da Sibéria.

A Região Autônoma Judaica chegou a ser descrita como uma espécie de reserva indígena. Em 1914, existiam aproximadamente 7 milhões de judeus no Império Russo. Vinte anos mais tarde, quando a região recebeu o status de “Oblast”, a população de judeus ali era de cerca de 3 mil pessoas – cerca de 15% da população total do território. Nos versos de um poeta local, Arn Vergelis: “Passamos por ondas de calor e tufões, com um mandamento – anunciado para o mundo: quer beber água? Cave seu poço. Quer comer pão? Semeie seu campo.”

Ainda assim, imigrantes chegavam. E não havia infraestrutura para eles. Habitantes mandavam mensagens desesperadas pedindo para que o governo central parasse de estimular a imigração, mas o que o governo podia fazer – já que eles próprios estavam pagando pelas passagens de ida para os imigrantes? Os recém-chegados se deparavam com condições desesperadoras. Casas mal construídas, choupanas feitas às pressas, com troncos de madeira mal ajambrados com um vão entre cada um deles.

O Grande Expurgo

Em 1936, veio o Grande Expurgo e Stalin resolveu se livrar de tudo e todos que ameaçassem sua liderança completa – e entre eles estavam ideias como etnia e religião. O comunismo nunca tinha visto com simpatia a ideia de uma república baseada numa religião, mas até então isso tinha sido interessante para as autoridades soviéticas. A partir de 1936, tudo mudou.

Stalin extinguiu o Comzet, fechou todas as instituições judaicas e ordenou prisões de todos os líderes intelectuais e culturais da região. Muitos judeus que tinham retornado da Segunda Guerra como heróis militares, condecorados por lutar contra a ameaça nazista, foram presos e, quando não fuzilados, mandados para gulags. Birobidjan voltou a ser a terra de ninguém que jamais tinha deixado de ser.

A fundação do Estado de Israel foi o golpe de misericórdia para o território. Entre 1948 e 1959, cerca de 16 mil judeus emigraram para a Terra Prometida, aumentando ainda mais a paranoia de Stalin com os “cosmopolitas apátridas”. Todo tipo de menção ao judaísmo passou a ser removida da vida política, cultural, e histórica soviética. Até mesmo a biografia de Karl Marx foi “purificada”. Somente os cientistas que trabalhavam nos projetos nucleares tiveram seus empregos preservados.

Birobidjan, claro, não escapou do expurgo; boa parte de sua elite foi deportada (ou, provavelmente, morta). Mais de 30 mil livros da biblioteca da cidade foram queimados. Em seu leito de morte, Stalin, delirante, acreditava ter sido envenenado por médicos judeus e expressou seu desejo de deportá-los para Birobidjan.

Em 1958, o Oblast Autônomo Judaico tinha 326 mil pessoas, dois quais apenas 14 mil eram judeus. Para o sucessor de Stalin, Nikita Khrushchev, a culpada pelo fracasso da experiência foi a inaptidão dos judeus para “trabalho coletivo” e “disciplina”. Uma sinagoga inaugurada na época acabou incendiada sob circunstâncias suspeitas. E a cada década, à medida que centenas abandonavam o lugar, a herança judaica deixava de ter uma importância real e se firmava como um parque temático stalinista.

Hoje em dia, a cidade ainda tem cartazes em iídiche, uma estátua de Shalom Aleichem, e seu principal jornal se chama “Birobizhaner Shtern”, a “Estrela de Birobidjan”. Mas a população judaica da cidade não passa de 1.628 pessoas, 0,2% do total da província. Apenas uma escola no território ainda ensina o iídiche. Refeições kosher? Somente uma vez ou duas por mês. É mais fácil hoje em dia encontrar na capital restaurantes chineses – muitos dos quais até têm um “menu judaico”, mas que deixou de ser servido por falta de clientes. E que servem um schnitzel feito de carne de porco.

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