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“After Life”, série de Rick Gervais, parte de uma premissa extremamente sombria, mas, aos poucos, se rende ao espírito generoso da humanidade.
“After Life”, série de Rick Gervais, parte de uma premissa extremamente sombria, mas, aos poucos, se rende ao espírito generoso da humanidade.| Foto: Divulgação

Nas últimas duas décadas, Ricky Gervais ganhou notoriedade e muito dinheiro desempenhando um papel que é bastante tradicional na história do humor: o do pestinha. Com corpo e jeito de se vestir de menino, sem falar naquela risada escancaradamente infantil, ele teve permissão dos “adultões” para rir da própria indústria do entretenimento, e usando os termos menos lisonjeiros possíveis. Deu certo.

Deu muito certo. Mas a um custo. Porque o bobo-da-corte que ousa apontar a nudez da nobreza sempre acaba na masmorra. Ricky Gervais, apesar do jeito de moleque encrenqueiro que passa mais tempo na diretoria do que na sala de aula, passou a ser visto como o genuíno representante de um humor niilista e desagradável, que precisa desesperadamente confrontar e destruir o politicamente correto para conseguir brilhar.

Até que o criador da série The Office e o astro de tediosos espetáculos de stand up que, oh, tentam mostrar que muitas coisas nas religiões não fazer sentido no mundo secular resolveu escrever, dirigir e produzir After Life, série da Netflix que chega à sua segunda temporada e que é simplesmente fabulosa justamente por surpreender o espectador que possa estar esperando pelo humor virulento de Ricky Gervais.

Inversão de expectativa

A série parte de uma premissa sombria. Tony é repórter num jornalzinho de cidade do interior. Seu trabalho é cobrir histórias que não interessam a ninguém. Para piorar, sua mulher, por quem ele era completamente apaixonado, morre de câncer. Agora o infeliz Tony, que não acredita em vida após a morte, em céu, em inferno, em absolutamente nada que não na sua medíocre realidade palpável, quer se matar. Não sem antes tornar a vida dos que o rodeiam um inferno, com observações mordazes e cruéis a respeito de todos.

O bom é que essa premissa, já na primeira temporada, não se sustenta. E o que vemos é um Tony cercado por pessoas esquisitas, cheias de pequenos defeitos, mas também generosas cada qual a seu modo, autocentradas, mas capazes de olhar de soslaio e se compadecer do sofrimento alheio. É justamente aí que a série melhora, e melhora muito. Todos os personagens que interagem com Tony parecem dispostos a demovê-lo da ideia de suicídio e a fazê-lo perceber que há vida e até felicidade depois da morte da esposa.

Piegas? Aí é que está. A série tem lá aquele incômodo pianinho que ressalta os momentos mais dramáticos. E também tem diálogos horrorosamente artificiais, cheios de lição de moral, sem falar em algumas interpretações tão ruins que fazem o saudoso cigano Igor de uma novela qualquer merecer um Oscar. Mas esses defeitos, em vez de incomodar, despertam no espectador uma generosidade tão improvável quanto aquela de que o protagonista é alvo.

Já na primeira temporada de After Life vemos o espírito autodestrutivo e cruel de Tony ser vencido por pequenos atos de bondade. Não me refiro, aqui, a ajudar um cego a atravessar a rua. A bondade que After Life retrata é mais sutil e está no trato entre os personagens, cada qual com suas idiossincrasias, cada qual com sua bagagem de infelicidade, cada qual lutando para ser uma pessoa melhor, digna da mesma saudade que Tony sente pela esposa morta.

Caridade

Como a segunda temporada de After Life estreou na Netflix no último dia 24 de abril, acredito que o leitor já tenha entendido que Tony não se mata. O que não quer dizer que sua infelicidade diminui. Em seu processo de luto, Tony passa horas bebendo e assistindo aos vídeos em que sua mulher, sempre tão alegre (de uma alegria daquelas bem barulhentas, quase vulgar), revela como o ser humano pode ser bom.

Mas ele está comprometido a ser uma pessoa melhor, a não jogar sobre os que o cercam a responsabilidade pela morte da esposa e por sua tristeza. E o que vemos nessa segunda temporada é justamente um Tony que parece ter percebido que todos ao seu redor de alguma forma lutam para manter a cabeça para fora d’água nessa sucessão de tropeços que é a vida.

Curioso perceber como Ricky Gervais, conhecido por seu ateísmo militante, bebe de fontes religiosas milenares que falam em resignação e no sofrimento como caminho para a salvação. É como se, de repente, o comediante de um dos espetáculos de stand up mais constrangedores de todos os tempos, no qual ele tenta alertar o público para o lado irreal de histórias como a da Arca de Noé, percebesse que há, sim, um sentido na vida. Talvez o sentido de que fala Viktor Frankl?

No universo de séries cheias de críticas sociais ou de referências vazias e nostálgicas aos anos 1980 ou ainda com metáforas óbvias, sem falar na exaltação da virtude política de alguns personagens, After Life é um alento. Porque, a despeito de certa pobreza técnica, ela se propõe apenas a contar a história de uma pessoa infeliz que, cercada por outras pessoas igualmente ou mais infelizes, mas com uma natureza intrinsecamente caridosa, se esforça para tornar a existência suportável num mundo que a todo instante parece querer nos mostrar que não há motivo para continuar vivendo.

Mas há, sim. E como há!

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