“Um lugar para responsabilizar as corporações e os governos mais poderosos do mundo.”
Foi com slogans desse tipo que o site americano The Intercept entrou no ar, em 2014, bancado por um bilionário pioneiro do comércio eletrônico.
Uma década depois, no entanto, o veículo que virou um símbolo contemporâneo do jornalismo independente, combativo e “progressista” está à beira do abismo. E os motivos da derrocada vão muito além de uma grave crise financeira iniciada em 2022, quando o projeto perdeu o apoio de seu fundador e financiador.
Segundo a imprensa dos EUA e ex-colaboradores da publicação, sua trajetória descendente é fruto de incapacidade administrativa, disputas internas, problemas legais, perda de credibilidade e até do desleixo com relação a um de seus princípios essenciais: a proteção das fontes.
Afinal, a semente do Intercept foi justamente o desejo de “desenvolver meios para revitalizar a privacidade virtual e permitir que as pessoas procurem jornalistas anonimamente” – como explicou Pierre Omidyar, o “patrocinador” responsável por injetar cerca de U$ 250 milhões (R$ 1,3 bilhão na cotação atual) na empreitada durante oito anos.
Na década de 1990, Omidyar revolucionou a web ao permitir a interação entre vendedores e compradores por meio da plataforma eBay. E provavelmente pensou que poderia fazer o mesmo com a imprensa quando se encantou pelo trabalho do jornalista Gleen Greenwald e da documentarista Laura Poitras, conhecidos por revelar ao mundo o “Caso Snowden”.
Em 2013, o analista de sistemas Edward Snowden fugiu dos EUA após divulgar operações de vigilância realizadas pela Agência de Segurança Nacional (NSA), onde trabalhava. Escondido em Hong Kong, entregou uma série de documentos a Poitras e Greenwald.
O repórter assinou a primeira reportagem sobre o assunto (quando ainda colaborava com o jornal britânico The Guardian) e a cineasta dirigiu o filme ‘Cidadãoquatro’, vencedor do Oscar de melhor documentário em 2015.
Pierre Omidyar, que já pensava em ingressar no setor de mídia e por pouco não comprou o Washington Post (mais tarde arrematado por Jeff Bezos, da Amazon), enxergou na história de Snowden uma oportunidade. Decidiu, então, criar do zero uma iniciativa própria na área de jornalismo.
Mas não se tratava de uma empresa. Típico filantropo woke do Vale do Silício (e uma espécie de George Soros mais jovem), Pierre fundou uma organização sem fins lucrativos, a First Look Media, cujo objetivo era produzir diversos sites jornalísticos temáticos
O primeiro deles, lançado em 2014, seria o Intercept, encabeçado por Gleen Greenwald, Laura Poitras e outro repórter investigativo premiado, Jeremy Scahill.
Menos de um ano depois, porém, diversas reportagens veiculadas na imprensa americana já indicavam que o projeto não havia começado bem.
Na verdade, o primeiro “climão” surgiu ainda em 2013, quando o site BuzzFeed vazou a informação sobre a criação da First Look – o que irritou profundamente Omidyar e pôs em xeque a união do grupo fundador.
Em seguida, os problemas só aumentaram. Contratações desenfreadas, e a peso de ouro, eram feitas a torto e a direito (alguns funcionários ganhavam o dobro de editores veteranos do New York Times).
A redação perdia furos de reportagem para outros veículos por causa das inúmeras (e infrutíferas) discussões entre as chefias. Gestores eram trocados de função sem maiores explicações.
E o que mais corroía a equipe por dentro: jornalistas criticavam uns aos outros nas redes sociais.
Grandes nomes começaram a deixar a redação um ano após o lançamento do projeto
Em 2015, o repórter Ken Silverstein, cujo currículo inclui trabalhos para a revista Harper’s Bazaar e o jornal Los Angeles Times, escreveu um relato sobre sua passagem nada agradável pela First Look Media.
Publicado no site Politico e intitulado “Onde o jornalismo vai para morrer”, o texto trata, acima de tudo, do que ele chama de “incompetência gerencial épica” da organização.
Segundo Silverstein, a gestão simplesmente não conseguia concluir tarefas simples, como aprovar orçamentos. E, obviamente, se embananava quando tentava voos maiores – a exemplo do site The Racket.
Liderado por Matt Taibbi, ex-editor da Rolling Stone, o projeto da First Look tinha como objetivo denunciar, com uma pegada satírica, casos de corrupção na política e no sistema financeiro.
Mas foi cancelado antes mesmo de entrar no ar – por divergências internas e, claro, problemas de gerenciamento. Taibbi se desligou do grupo logo em seguida.
Em seu artigo, Ken Silvertein ainda cita o desânimo dos editores ao saberem que uma matéria sua reportava o julgamento justo de um criminoso. Ou seja: mostrava o bom funcionamento do “sistema” (o principal inimigo a ser combatido pelo Intercept).
Aos poucos, outros grandes nomes foram se desligando do time. Inclusive Glenn Greenwald, que saiu em 2020 alegando “censura interna”. De acordo com ele, os editores tentaram diluir uma reportagem de sua autoria que trazia denúncias contra Hunter Biden, filho do então candidato à presidência Joe Biden.
“Nunca imaginei que uma organização que ajudei a criar se tornaria um obstáculo ao jornalismo independente que deveria promover”, disse o jornalista, em sua carta de demissão.
Em um comunicado de esclarecimento, a editora-chefe do Intercept, Betsty Reed, negou as acusações. “Ele se recusou a seguir os padrões editorais e, em vez disso, tentou publicar um artigo repleto de imprecisões e omissões.”
Jeremy Scahill apoiou Greenwald. “O que deveria ser uma plataforma para o jornalismo destemido transformou-se em um campo minado de interesses e agendas pessoais", afirmou ao Daily Beast. O cofundador, no entanto, permaneceu no time, e atualmente é chefe de redação em Washington.
No fim daquele ano, foi a vez de Laura Poitras pedir as contas. Ou melhor: pediram para ela.
Segundo a documentarista, a First Look a dispensou por fazer críticas internas quanto à proteção de fontes. Poitras se referia diretamente ao caso de Reality Winner, outra ex-analista da NSA que vazou documentos sigilosos – mas, ao contrário de Snowden, acabou presa.
Winner entregou ao Intercept documentos sobre ataques de hackers russos durante as eleições americanas de 2016. O material era “quente”, pois colocava em dúvida a eficácia dos sistemas de segurança do país.
Ao enviar o relatório à NSA, para verificar sua autenticidade, a equipe do site cometeu um descuido fatal: deixou à mostra informações sobre a data e o local onde a cópia havia sido impressa. Winner acabou sendo condenada, em 2018, a mais de cinco anos de prisão.
“Minha intenção era expor a verdade, mas acabei sendo exposta e penalizada por isso”, disse a analista ao site The Record, durante seu julgamento.
Especialistas na área de proteção aos whistleblowers (informantes) foram categóricos ao apontar a responsabilidade do Intercept.
“É uma ironia amarga que um site que se vangloria de defender os informantes tenha, na verdade, exposto alguns deles ao perigo”, afirmou a advogada Jesselyn Radack, acostumada a atuar em processos do gênero, em entrevista ao Politico.
“O Intercept falhou miseravelmente em suas obrigações básicas de segurança operacional”, disse, para o Washington Examiner, o repórter investigativo e ex-agente da CIA John Kiriakou.
Por fim, no final de 2022, o próprio Pierre Omidyar abandonou o barco. Anunciou a descontinuidade do financiamento, sob a justificativa de que iria mudar suas prioridades filantrópicas.
Mas, segundo informações de bastidores, o bilionário finalmente aceitou que o projeto era incapaz de se tornar sustentável a longo prazo. Ele inclusive criou um braço comercial da First Look Media, o Topic Studios, dedicado a documentários e podcasts sobre crimes.
Site pode ficar completamente sem dinheiro daqui a um ano
Já o Intercept, desvinculado de sua controladora desde 2023, segue sem fins lucrativos. E com um modelo financeiro frágil, que depende de doações de leitores e outras formas de financiamento externo.
Segundo uma matéria recente do site Semafor (criado por ex-colaboradores da Bloomberg e do New York Times), dados internos da organização mostram que ela está perdendo cerca de U$ 300 mil (R$ 1,5 milhão) por mês – e pode ficar totalmente sem dinheiro até maio de 2025.
No último mês de fevereiro, cerca de 30% de seus colaboradores tiveram de ser demitidos para reduzir custos.
Procurada pela reportagem, a CEO Annie Chabel afirmou que o buraco não é tão fundo assim. “Essa projeção é o pior cenário possível. Temos um plano de aumento de receitas que nos permitirá continuar num horizonte mais longo.”
As contribuições do público realmente dobraram nos últimos meses, principalmente após os ataques do Hamas a Israel, em outubro de 2023.
Assumidamente pró-Palestina, a cobertura agressiva do Intercept caiu no gosto da parcela da esquerda que vê um massacre em curso na Faixa de Gaza e monta acampamentos nas universidades de elite para protestar contra a suposta omissão do governo Biden na guerra.
Mas os leitores fazem doações pequenas, que em nada se comparam aos montantes oferecidos por quem costuma colocar dinheiro “de verdade” na chamada mídia independente: democratas de perfil moderado e liberal.
Além de manter seu apoio a Joe Biden, esse grupo é formado por muitos judeus. E, ao negar ajuda ao Intercept, está fazendo a publicação pagar o preço do próprio radicalismo.
Em tempo: o site Intercept Brasil, do qual Glenn Greenwald também fez parte, foi separado da redação americana em 2022. Em maio, a publicação lançou uma campanha de arrecadação para “colocar o orçamento de volta nos trilhos após meses de queda na receita”.
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