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Conhecido por suas análises sobre o atual cenário político global, o escritor e analista ítalo-suíço Giuliano da Empoli está de volta às livrarias brasileiras com “A Hora dos Predadores” (selo Vestígio).
Neste livro, o autor de “Os Engenheiros do Caos” e “O Mago do Kremlin” revela como autocratas carismáticos e magnatas digitais moldam um mundo no qual manipulação, ciberataques e estratégias arrojadas (porém imorais) valem mais do que diplomacia ou diálogo. Segundo ele, estamos diante de uma nova realidade, onde o autoritarismo avança sob outras máscaras.
No recorte a seguir, Da Empoli mostra como esse teatro de tiranos se manifesta de forma concreta na guerra entre Rússia e Ucrânia — um conflito que, para o autor, pode ser visto como um laboratório de formas emergentes de poder.
O representante permanente da França nas Nações Unidas me fala de seus encontros com Vladislav Surkov, o antigo estrategista de comunicação de Putin [e ex-vice primeiro-ministro da Rússia] que se considerava um artista, durante as primeiras negociações a respeito da Ucrânia.
O personagem que ele descreve é frio, extremamente hábil, mais brutal do que eu imaginava. “Os outros russos tremiam quando ele entrava na sala. E ele nem fazia questão de disfarçar. Quando levantávamos a questão sobre a atitude dos separatistas, que o Kremlin alegava não controlar, ele respondia: ‘Não se preocupem, eu cuido disso’.”
Em outra ocasião, Bonne [Emmanuel Bonne, assessor diplomático da presidência francesa] também me descreveu sua impressão de Surkov: um negociador brutal, capaz de se tornar fisicamente ameaçador, como acontece com frequência em russos dessa estirpe, mas também brilhante, capaz de gestos surpreendentes. “Sem ele, restou apenas a brutalidade”, disse-me o assessor, com um toque de pesar.
Três meses antes da invasão da Ucrânia, Surkov, que havia sido afastado por Putin algum tempo antes, publicou um artigo em que disse tudo.
Toda sociedade, escreveu ele, está sujeita à lei física da entropia. Por mais estável que seja, na ausência de intervenção externa, acaba produzindo caos em seu interior. Até certo ponto, esse caos pode ser administrado, mas a única solução definitiva para o problema é exportá-lo.
Para Surkov, os grandes impérios da História se regeneram deslocando o caos que produzem para além de suas fronteiras. Foi assim com os romanos na Antiguidade, foi assim — segundo ele — com os americanos no século XX. E é assim com a Rússia, para a qual “a expansão constante não é apenas uma ideia, mas a verdadeira razão existencial de nossa história”.
Como todos os que desempenham a mesma função, Surkov não determina os acontecimentos, apenas lhes acrescenta uma camada de cinismo intelectual — já que esses mistérios nos superam, façamos de conta que os organizamos —, o que não diminui em nada o interesse de suas reflexões.
Todos aqueles que, como ele, viajaram até o centro do reator e aceitaram dizer algo sobre o que viram, por mais manipuladores que sejam, compartilham uma qualidade, a pertinência, rara entre os que apenas observam a máquina de fora.
Máscara de cera
A primeira vítima da sinistra estratégia descrita por Surkov é a Ucrânia de hoje. O presidente francês tem um encontro a portas fechadas com Zelensky. Dessa vez, não há espaço para a trama dos assessores.
O momento talvez seja o mais dramático desde o início da guerra. Os ucranianos estão à beira do colapso, o exército russo, que já sofreu centenas de milhares de baixas, segue avançando, indiferente ao custo humano, e as eleições americanas ameaçam implodir uma coalizão internacional cada vez mais instável.
Ignoro o que os dois dirigentes disseram um ao outro no bunker subterrâneo que abriga o gabinete da Ucrânia. O que sei é que nunca tinha visto uma cena como a que se produziu ao final da reunião.
Depois de meia hora, Macron abre a porta, o rosto como uma máscara de cera. Ele faz menção de sair, o encontro acabou. Nesse momento, Zelensky surge de dentro da sala. Pequeno, musculoso, vestindo o uniforme militar que o mundo aprendeu a reconhecer, tem o semblante abatido, desamparado. Parece à beira das lágrimas.
Ele segura Macron por trás e lhe sussurra algo ao ouvido. Uma súplica. O presidente francês se vira e responde. Os dois homens conversam por mais um minuto, muito tensos, muito próximos, sem que ninguém possa ouvir. Por fim, Macron muda de expressão. Ele não sorri, mas sua mandíbula relaxa. “É uma ideia”, ele diz. E deixa Zelensky na soleira da porta.
Quando o caos ultrapassa certo limite, a única maneira de restaurar a ordem é encontrando um bode expiatório. E o líder, qualquer que seja, sempre é um candidato em potencial.
Tolstói o compara a “um carneiro engordado para o matadouro”. Engordado por seus triunfos, pela obediência de seus súditos, pelo poder e pela fortuna, apenas para ser, de repente, derrubado pela mesma força que o elevou.
Desejo a Zelensky que escape desse destino. Mas as leis da política toleram pouquíssimas exceções.
Os romanos, grandes conhecedores da tragédia política, colocaram a Rocha Tarpeia ao lado do Capitólio. Os traidores condenados à morte eram atirados desse penhasco no vazio, a poucos metros do local onde haviam vivido suas horas de glória. Hoje, o princípio continua valendo, embora a tragédia costume assumir a forma de farsa.
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Conteúdo editado por: Omar Godoy



