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Até pouco tempo, “participar de uma comunidade religiosa” era quase sinônimo de presença física. Ser religioso tinha cheiro de igreja cheia, barulho de cadeiras arrastando e abraços apertados no fim do culto. A fé era vivida no corpo, e o pertencimento se construía no encontro.
Mas essa lógica, que por séculos pareceu imutável, deixou de ser inevitável. Hoje, você pode passar meses sem atravessar a porta de um templo e, ainda assim, participar ativamente de uma comunidade religiosa.
Em poucos cliques, assiste a um culto pela televisão ou no YouTube, contribui com o dízimo pelo celular e acompanha a rotina espiritual de líderes e membros pelas redes sociais. Até as crianças da geração alfa (nascidas a partir de 2013) podem “ir à igreja” dentro de um jogo como o Roblox — e algumas realmente vão.
O convívio continua existindo, claro. Mas a presença física deixou de ser a condição mínima da experiência religiosa. A fé migrou para telas, plataformas, avatares e transmissões ao vivo, e essa mudança tem reconfigurado de forma profunda a maneira como se vive, compartilha e interpreta o sagrado.
Efeitos da pandemia
Se o rádio e a TV ampliaram o alcance do proselitismo religioso à distância (antes limitado a cartas, revistas e livros), a internet potencializou esse alcance de modo antes impensável, o que possibilitou a criação de novas manifestações da religiosidade e impactou as relações de poder e influência dentro das religiões. E os efeitos da pandemia de Covid-19 tornaram essa transformação ainda mais intensa.
De acordo com o pesquisador Jorge Miklos, no artigo “O sagrado nas redes virtuais: a experiência religiosa na era das conexões entre o midiático e o religioso”, tecnologia e teologia não estão separados.
Segundo ele, as novas tecnologias criam uma sociabilidade densa, o que resulta num ambiente que pode ser qualificado como espiritual “pela união que transcende o tempo e o espaço”. “A tecnologia flerta com a magia, com o místico, com o mítico”, comenta o doutor em Comunicação e mestre em Ciências da Religião.
Miklos concorda com o sociólogo Carlos Eduardo Aguiar de Souza, para quem a internet marca o início de uma nova forma de relação com o sagrado.
“Afinal, defende-se, fundamentalmente, que há entre o homem e o sagrado uma relação comunicativa, portanto, à medida que o suporte comunicativo dessa relação se transforma, se percebe uma mudança também no modo de experimentar o sagrado”, defende Aguiar no livro A Sacralidade Digital: Religiões e Religiosidade na Época das Redes (2014).
Ou seja, ao mesmo tempo em que a religião influencia a tecnologia e seus usos, a tecnologia influencia a religião.
Influencers da fé
Por falar em influência, a ascensão dos chamados “influenciadores digitais” ou influencers chegou ao contexto religioso e tornou-se um símbolo dessa via de mão dupla que é a relação entre religião e tecnologia.
De acordo com o Censo 2022, mais de 90% dos brasileiros são religiosos, com 56% de católicos e 26% de evangélicos. Isso, é claro, se reflete na presença digital de figuras desses grupos. É cada vez mais comum encontrarmos perfis de pastores, padres, artistas e influencers religiosos com milhões de seguidores no Instagram, YouTube e TikTok.
O padre Fábio de Melo, a maior figura religiosa brasileira em número de seguidores nas redes sociais, conta com 25,8 milhões de pessoas acompanhando suas publicações. Na sequência, dentro do segmento católico, aparecem Frei Gilson (11 milhões) e o padre Marcelo Rossi (10,5 milhões).
Do lado evangélico, destacam-se figuras como Deive Leonardo (16 milhões de seguidores), pastor Cláudio Duarte (10 milhões) e pastor Antônio Júnior (3 milhões).
Esses dados incluem apenas as métricas do Instagram, sem contar as demais redes, em que eles também somam fãs, admiradores e curiosos em números acima dos seis dígitos.
Nicho de mercado
O crescimento constante de pessoas nas redes sociais e os apelos cada vez maiores para que elas compartilhem sua fé no ambiente virtual fará o número de influenciadores religiosos continuar aumentando. E isso tem pelo menos dois grandes impactos na religião (sobretudo a cristã).
O primeiro é o que alguns chamam de mercantilização da fé. O público religioso também é um nicho de mercado, e os influencers desse segmento não se limitam a falar de virtudes e mensagens bíblicas.
Eles também falam de cultura e comportamento: dão dicas de roupas, recomendam livros e bíblias especiais, comentam filmes e séries, além de personalizarem seus próprios artigos religiosos, como camisetas, canecas, itens de decoração e recursos literários, entre muitos outros.
De acordo com o estudo Gospel Power, da consultoria B&Partners, só o mercado evangélico (gospel economy) movimenta R$ 21,5 bilhões por ano no Brasil. Segundo o levantamento, a relação entre fé e consumo é mais intensa do que muita gente imagina.
Cerca de 58% dos evangélicos dizem que suas decisões de compra são diretamente guiadas por suas convicções religiosas. Não por acaso, 31% já deixaram de consumir produtos de empresas que feriram seus princípios. Isso sem contar o mercado católico, que abrange mais de 50% da população brasileira.
Esse potencial de lucros e negócios se desdobra em tendências de consumo bastante peculiares, com pessoas pagando fortunas para participar de retiros espirituais exclusivos e até igrejas de luxo com áreas VIP, reservadas para um público selecionado.
Tensões internas
Um segundo impacto do crescimento dos influenciadores digitais religiosos é o estabelecimento de novas tensões hierárquicas dentro das comunidades de fé. Afinal, nem todo influenciador religioso está em uma posição de liderança dentro de sua denominação.
Para o teólogo e jornalista Rodolfo Capler, é importante estabelecer que nem todos os religiosos com milhares ou milhões de seguidores nas redes sociais são, de fato, líderes espirituais.
“O erro cometido pela igreja é alçar influencers digitais à posição de autoridades espirituais. Se soubermos separar as coisas, os influencers cristãos poderão fazer um trabalho salutar”, afirmou Capler em uma entrevista ao site evangélico Comunhão.
Desse modo, desenvolve-se uma mudança importante de comportamento religioso. Até aqui, em grande medida, a autoridade religiosa era determinada pelos líderes já estabelecidos. Agora, mais do que nunca, as figuras de autoridade religiosa são determinadas pelos próprios membros.
Então, apesar de haver um líder responsável por um grupo de afiliados de uma denominação, os membros podem preferir a “autoridade” de um influencer famoso, cuja mensagem nem sempre está em harmonia com o que diz a autoridade institucional do grupo — nesse caso, o pastor/presbítero ou padre.
Como resume Moisés Sbardelotto, consultor em Comunicação e professor da PUC Minas, na publicação “Deus digital, religiosidade online, fiel conectado: estudos sobre religião e internet”, “forma-se uma nova identidade religiosa a partir de comunidades fluidas, reunidas em torno de uma religiosidade midiatizada moldada por um conjunto de práticas cômodas, terapêuticas e personalizadas”.
Cultos no videogame
Uma das mais recentes e interessantes forma como essa religião midiatizada se manifesta são os jogos — a religião gamificada. A gamificação é o conceito de aplicar a lógica e os mecanismos de games/jogos em contextos que não são de entretenimento
Muito utilizado no mundo corporativo e na educação, esse conceito tem ganhado espaço cada vez maior no mundo religioso: desde aplicativos que ajudam a ler a Bíblia até cultos realizados dentro de jogos multiplayer.
Um exemplo recente é o Advent City, uma área que a Igreja Adventista lançou dentro do Roblox com foco no público adolescente. De acordo com a denominação, o jogo já teve mais de 236 mil acessos e é uma opção educativa, não apenas religiosa.
“Por exemplo, o jogador aprende o que é necessário para montar uma barraca e várias coisas sobre a arte de acampar e escotismo. Além disso, participam de quizzes que testam seus conhecimentos em várias matérias, inclusive sobre a Bíblia”, explica Carlos Magalhães, diretor de estratégias digitais da igreja, à Gazeta do Povo.
A criação do espaço dentro do Roblox foi uma resposta a uma demanda que surgiu da própria comunidade. “Recebíamos perguntas de vários pais preocupados com os filhos que já frequentavam o Roblox. A preocupação dos pais com a segurança dos filhos e a falta de opções saudáveis na plataforma nos incentivou a criar o projeto”, conta Magalhães.
De acordo com ele, as novas gerações costumam evitar as abordagens mais diretas e pessoais dos adultos, mas não estão fechadas para a religião. Apenas preferem outras abordagens, em que se sintam acolhidos sem julgamentos.
Prova disso é que os próprios pais participam bastante do jogo junto com os filhos. “O que temos visto de resultado até agora são pais que estão aprendendo a jogar e gostando de participar com os filhos dessa imersão virtual”, afirma.
“Se os pais ou educadores não podem acompanhar ou supervisionar a atividade, recomendamos que qualquer atividade online seja evitada, seja em plataformas de jogos ou redes sociais”, completa.
Púlpitos e podcasts
O fenômeno religioso, antes limitado ao espaço físico, agora se expande para territórios que nossos antepassados jamais imaginariam. O culto convive com o feed, o púlpito com o podcast. Nesse movimento, as fronteiras entre o “real” e o “virtual” deixam de importar tanto quanto a experiência que cada pessoa carrega consigo.
Seja diante de um altar de pedra ou de uma tela iluminada, o que permanece é a busca por pertencimento e transcendência. A tecnologia pode alterar os formatos, acelerar ritmos, criar novas tensões e até redefinir autoridades — mas não elimina a necessidade humana de acreditar, de pertencer, de encontrar um lugar para chamar de sagrado.
Talvez o futuro da fé não esteja em escolher entre o presencial ou o digital, mas em reconhecer que ambos moldam, à sua maneira, o modo como continuamos a buscar o divino.





