Em dezembro de 2022, a rede social Twitter, já sob liderança do novo dono Elon Musk, lançou seu programa de checagem colaborativa de fatos, as Notas da Comunidade. Tweets (publicações da rede social) com informações enganosas podem ser marcados com uma tarja para “adicionar contexto” — como as próprias notas preferem chamar suas correções. A Gazeta do Povo cobriu e explicou seu funcionamento na época do lançamento. Quase seis meses depois, é oportuno revisitar o programa que já corrigiu governos, presidentes, jornalistas e até agências de checagem. No dia 25 de abril, depois de uma fase de testes em que eram visíveis para poucos usuários, as Notas da Comunidade foram oficialmente tornadas públicas no Brasil.
As notas são um sistema baseado em consenso inspirado em um programa de democracia digital de Taiwan. Desenvolvedores que trabalharam no último foram chamados por Musk. Os detalhes do software são expostos na plataforma GitHub, uma das mais populares para programadores, adquirida pela Microsoft em 2018.
A checagem do Twitter “na verdade não chama a si mesma de ‘checagem de fatos’”, comenta Jemima Kelly, colunista da revista Forbes; “em vez disso, lemos que ‘leitores adicionaram contexto’. É uma abordagem que trata os fatos como complexos, contestados e em evolução, em vez de imaginar que são sempre simples, incontroversos e estabelecidos”.
Como os autores das notas são anônimos, há também a vantagem de não haver incentivo “à sinalização de virtudes ou marcação de pontos” com a própria tribo, opina Kelly. O programa não coleta informações como gênero e afiliação política, em vez disso, um contribuidor é classificado internamente pelo modo como votou em outras notas no passado.
Checagens notórias e sua repercussão
Quem vigia os vigilantes? A milenar pergunta do poeta romano Juvenal pode ter encontrado uma resposta nas Notas da Comunidade. Na semana passada (3), a agência de checagem PolitiFact publicou que Randi Weingarten, presidente de um sindicato de professores dos EUA, estava sendo injustiçada por internautas por sua postura a respeito do fechamento de escolas na pandemia. “Ela criticou os chamados pela reabertura completa das escolas em 2020 do governo Trump, mas é enganoso alegar que ela se opôs à reabertura por completo”. A PolitiFact é afiliada ao Instituto Poynter, uma espécie de Vaticano da checagem de fatos no jornalismo que emite certificados para agências no mundo todo, inclusive no Brasil.
As Notas da Comunidade, citando três fontes, entre elas os jornais The Guardian e The New York Times, corrigiram a PolitiFact: a agência “está deturpando as posições de Weingarten. Ela chamou as tentativas de reabrir as escolas no outono de 2020 ‘irresponsáveis, insensíveis e cruéis’. Seu sindicato fez pressão agressivamente no nível local e continuaram a fazê-lo em 2022”.
Em 12 de abril, a primeira-dama Janja da Silva alegou que a taxação de produtos anunciada pelo ministro da Fazenda de Lula era “para as empresas e não para o consumidor”. Na data, a tarja de correção comunitária não era visível para todos os usuários do Twitter. Agora, com o lançamento das notas no Brasil, pode ser vista por todos: “Isto é falso! Atualmente, empresas já pagam impostos para itens abaixo de US$ 50 enquanto consumidores são isentos de cobrança”, diz a tarja, citando quatro fontes da imprensa brasileira.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva também foi corrigido no dia 22 de abril ao alegar “nunca igualei Rússia e Ucrânia”. A tarja diz “Isso não é verdade” e cita declaração anterior em que ele disse que Volodymyr Zelensky “quis a guerra” e que era “tão responsável quanto Putin” pelo conflito.
As jornalistas Vera Magalhães (O Globo, CBN, TV Cultura) e Daniela Lima (CNN) também foram corrigidas pelas notas por insinuar ou afirmar que sua defesa do projeto de lei das “fake news” (PL 2630/2020) estava sendo prejudicada ou censurada pelo Twitter, que passava por instabilidade no começo deste mês. Lima, especialmente, insistiu com argumentos de pouca perícia tecnológica que algo estranho havia acontecido, depois reagiu divulgando notícias negativas contra Elon Musk e acrescentou “em processo de despedida do Twitter” à descrição de seu perfil. Ela não posta tweets há três dias.
As alegações de censura praticada pelo Twitter chegaram aos olhos do próprio diretor executivo Elon Musk, que comentou “isso é ridículo” e explicou que a rede social passa por “dores do crescimento”. As notas que corrigiram as jornalistas citavam a respeitada agência Reuters como fonte.
O premiado jornalista Glenn Greenwald acompanhou criticamente a reação de Lima. “Ela continua o martírio dela. Ela irá para a cova acreditando que você [Musk] estava obcecado com o que ela estava dizendo na CNN Brasil a respeito de uma lei que você não conhecia até eu te contar a respeito uma hora atrás. Ela foi checada o dia todo, mas não se importa”.
Renato Souza, um repórter do Correio Braziliense, saiu em defesa de Daniela Lima: “Comunicador Glenn Greenwald e o bilionário Elon Musk atacam jornalista da CNN Brasil. Daniela Lima acusou o Twitter de censurar postagens a favor do PL das fake news”. Souza terminou também checado com uma tarja das Notas da Comunidade: “não houve nenhum tipo de ataque”, disse a tarja, citando mais uma vez a Reuters. Interessantemente, a nota acrescentou que o PL 2630 é “conhecido popularmente como PL da censura”.
O próprio Elon Musk já foi checado com tarjas, como informou a reportagem anterior da Gazeta do Povo. E não são só pessoas que tendem para a esquerda política que têm “contexto acrescentado”: a conta “Sal the Agorist”, que se diz libertária e seguidora do anarcocapitalista Murray Rothbard, alegou no dia 1º de maio que “a Rússia não invadiu a Ucrânia, a OTAN invadiu a Rússia. Nunca se esqueçam disso”. A tarja diz que a Rússia invadiu a Ucrânia em violação completa da lei internacional, e duas vezes, em 2014 e 2022, e que a OTAN “nunca invadiu a Federação Russa desde que a aliança foi fundada em 1949”.
Outra prova de diversidade de pensamento político entre os contribuintes das notas é que alguns já começaram a postar sugestões de notas que rejeitaram para ridicularizar. A conta “@tesoureiros”, que é de esquerda, mostrou uma nota sugerida, não visível para o público, que queria corrigir um tweet da conta oficial do governo federal (@govbr). A correção exagerava o risco de derrame da dose bivalente da vacina contra Covid. Como a Gazeta do Povo informou, o risco ainda é uma suspeita não confirmada, e apenas em idosos.
Como funciona a formação de consenso
Uma nota começa quando um usuário pré-aprovado encontra algum tweet que considera falso ou carente de mais informações e acrescenta sua correção e fontes. Outros contribuidores pré-aprovados então podem votar se aquela nota é útil ou não. Porém, a tarja abaixo do tweet não aparece até que um número suficiente de checadores concordem que ela é útil. Se poucos concordarem, ela jamais aparece para o público. Uma vez que uma nota é aprovada, ela aparecerá até mesmo se o tweet for incorporado a outras páginas da internet, como sites de jornais, função adicionada no mês passado. Ela passa também a ser alvo de votação de todos os demais usuários do Twitter, sem pré-aprovação como contribuidores.
Dessa forma, uma das maiores diferenças entre as Notas da Comunidade e as agências de checagem tradicionais é que uma única pessoa jamais fará uma correção sozinha. Uma checagem feita por agência pode até ser usada como fonte, mas basta que um número suficiente de colaboradores considere aquela checagem enviesada para que uma nota baseada nela nunca veja a luz do dia. Um contribuidor, ao escrever uma nota, precisa formulá-la pensando na opinião daqueles que tenham uma visão política diferente da sua.
Qualquer participante do Twitter pode se tornar um checador de fatos. Os pré-requisitos atualizados são não ter violado as regras da rede social desde 1º de janeiro, ter uma conta há no mínimo seis meses, fornecer um número de celular de uma operadora confiável, e não ter associação com outras contas das Notas da Comunidade. Ao pedir para participar, o usuário deverá concordar com três valores: “contribuir para construir o entendimento”, “agir de boa fé” e “ser solícito, até com as pessoas de quem discorda”; além de aprovar que suas contribuições sejam públicas.
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