Na edição de seu cinquentenário, a Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC) – o maior congresso conservador do mundo, realizado nos EUA – tinha tudo para ser uma grande ode a Donald Trump. E de certa forma foi.
Afinal, os americanos estão em pleno ano eleitoral, então é natural que o candidato republicano mais competitivo seja o centro das atenções. Mas outros dois líderes mundiais salvaram o evento da monotonia: Nayib Bukele e Javier Milei.
Nas redes sociais, e mesmo na imprensa tradicional, os presidentes de El Salvador e da Argentina foram retratados como as sensações do encontro, que nos últimos anos tem buscado cada vez mais se internacionalizar.
Ícones latino-americanos da direita (junto com Jair Bolsonaro, convidado do fórum em 2023), eles receberam tratamento de astros do rock e tiveram seus discursos compartilhados globalmente.
Trata-se de uma via de mão dupla: enquanto os republicanos atraem a atenção dos eleitores hispânicos, Bukele e Milei se cacifam como atores capazes de participar da política externa.
Além disso, as partes envolvidas mostram que a existência de uma direita global, unida e fortalecida, é possível – nesse sentido, o CPAC, no futuro, pode funcionar como uma antítese do Foro de São Paulo.
"Nosso movimento, como você pode ver, é internacional. É incrível ter dois presidentes da América Latina. Ouvi-los diretamente é importante porque eles comunicam uma mensagem anticomunista e antiesquerdista, pois conhecem o perigo e o mal que os socialistas já causaram em seus países", disse Mercedes Schlapp, uma das dirigentes da conferência, à rede de tevê Telemundo News (emissora norte-americana com programação voltada para o público latino).
Casada com Matt Schlapp, presidente da União Conservadora Americana (ACU, organização responsável pelo evento), Mercedes foi diretora de Comunicação Estratégica da Casa Branca na gestão Trump. Segundo ela, a aproximação com a comunidade latina é uma prioridade para o CPAC.
"Sabemos que os latinos são naturalmente conservadores. Defendem sua fé, a família e a pátria. E estão vendo os esquerdistas destruírem os Estados Unidos", afirmou, lembrando também que a conferência já organizou eventos no México, Israel, Austrália, Japão, Coreia do Sul e Brasil (a versão local acontece desde 2019).
Globalismo, George Soros e criminalidade estiveram na pauta do discurso de Bukele
Além de Nayib Bukele e Javier Milei, outras personalidades da direita mundial estiveram em Maryand, nos arredores de Washington, durante os quatro dias do encontro, realizado na semana passada.
Entre elas os britânicos Nigel Farage (um dos principais defensores da saída do Reino Unido da União Europeia) e Liz Truss (ex-primeira-ministra), o espanhol Santiago Abascal (líder do partido VOX) e Eduardo Bolsonaro (que em sua fala denunciou os abusos cometidos pelo judiciário brasileiro).
Mas nenhum deles foi tão carismático quanto a dupla de presidentes latino-americanos, ovacionados pela plateia após suas participações.
Bukele, que se apresentou no dia 22, já é admirado pelos americanos desde sua primeira eleição, em 2019. Primeiro, ganhou a simpatia dos entusiastas das criptomoedas – El Salvador foi a primeira nação do mundo a estabelecer o bitcoin como moeda legal.
E, mais tarde, do público em geral, graças a uma campanha de prisões em massa que reduziu os altíssimos índices de criminalidade no país. Quando ele chegou ao poder, a taxa de homicídio era de 38 assassinatos a cada 100 mil habitantes. Quatro anos depois, despencou para 1,7 por 100 mil.
Em seu discurso, o salvadorenho criticou o globalismo e a influência do bilionário George Soros, um dos maiores financiadores da esquerda e da cultura woke no planeta. "Dizem que o globalismo vem para morrer no CPAC. Estou aqui para dizer a vocês que em El Salvador ele já está morto", afirmou.
E acrescentou: "Mas se você quiser que o globalismo morra aqui nos Estados Unidos também, deve estar disposto a lutar sem pedir desculpas contra tudo e todos que o defendem. Lute por suas liberdades, lute por seus direitos".
Sobre Soros, ele questionou: "Quem concedeu a ele o poder de ditar políticas públicas e leis? Qual é a origem de seu direito de impor tal agenda? Os salvadorenhos agora estão blindados contra sua influência. As falácias propagadas por ele não encontram mais crédito entre nós".
A segurança pública, é claro, também esteve em pauta. "Olhem para as grandes cidades em declínio, como Baltimore, Portland, Nova York, apenas para citar alguns lugares onde o crime e as drogas se tornaram uma norma diária. Partam para a luta, porque no final valerá a pena. Vocês terão seu país de volta", disse.
Por fim, Bukele falou dos desafios que Trump encontrará caso vença o pleito deste ano. "O próximo presidente dos Estados Unidos não deve apenas vencer uma eleição. Ele deve ter a visão, a vontade e a coragem de fazer o que for preciso. E, acima de tudo, deve ser capaz de identificar as forças subjacentes que conspirarão contra ele. Essas forças obscuras já estão tomando conta do seu país."
Milei: encontro com Trump e "aula" de liberalismo econômico
Ainda pouco conhecido nos EUA, o recém-empossado Javier Milei fez uma apresentação mais baseada nos conceitos libertários em que acredita. Mas não deixou de fazer provocações ("Este é um belo dia para fazer a esquerda tremer") e repetir o seu já clássico bordão (Viva la libertad, carajo!).
"A Argentina entrou no século XX sendo um dos países mais ricos do mundo e hoje está em 140º lugar no ranking mundial, com mais de 50% de pobres e mais de 10% de indigentes. Quando se olha a quantidade de regulamentações, entende-se o motivo. Nossa equipe de governo já descobriu, até agora, 380 mil regulamentações que atrapalham o funcionamento econômico", afirmou o argentino, que falou no dia 24, pouco depois da apresentação de Donald Trump.
Os dois, aliás, se conheceram pessoalmente nos bastidores do CPAC. Um encontro definido como histórico e – para muitos – emocionante. "Faça a Argentina grande de novo!", disse Trump, parafraseando o próprio slogan.
Milei ainda deu uma "aula" de liberalismo econômico com alguns exemplos didáticos.
"Vamos supor que estamos no momento em que usávamos velas e ainda não havia surgido [Thomas] Edison. Quando aparece a lâmpada, os fabricantes de velas iriam à falência. Se tivéssemos ouvido os intervencionistas, em vez de ter esta conferência nesta bela sala cheia de luzes, a teríamos com velas. É assim que os socialistas arruínam nossas vidas", afirmou.
E ainda: "Se temos dez empresas competindo para fabricar telefones celulares e uma delas descobre uma técnica para produzir um aparelho de melhor qualidade a um preço menor, haverá nove empresas que vão à falência. No entanto, alguém aqui reclamaria de ter telefones melhores a preços mais baixos? Não. Então, fora com a teoria neoclássica".
Em outro momento, Milei destacou o papel dos empreendedores na sociedade. "Um empresário bem-sucedido é um benfeitor social na lógica do mercado. No capitalismo de livre mercado, só se é bem-sucedido servindo ao próximo. Portanto, eles são benfeitores sociais porque nos proporcionam bens de melhor qualidade a preços mais baixos e oferecem empregos. Vamos abraçar os empresários."
Para concluir, fez um pedido: "Não deixem o socialismo avançar, não apoiem a regulamentação [econômica], não permitam o avanço da agenda assassina [do aborto] e não se deixam levar pelo canto da sereia da justiça social".
A pergunta que não cala: quem será o vice na chapa republicana?
Em tom de campanha, Donald Trump se concentrou em atacar o atual mandatário, Joe Biden. "Um voto em mim é o seu bilhete de volta à liberdade, é o seu passaporte para sair da tirania. É a sua única fuga do caminho rápido para o inferno de Joe Biden e sua gangue!", disse o pré-candidato.
Ele também se considerou um "orgulhoso dissidente político", fazendo uma referência ao russo Alexei Navalny, opositor do ditador Vladimir Putin morto no último dia 16. E prometeu: "Tudo em nosso país voltará a funcionar corretamente. Seremos respeitados como nunca fomos antes".
Enquanto aplaudiam Trump, os políticos e militantes republicanos tentavam prever o nome do escolhido para compor a chapa do partido com ele.
É uma questão importante por vários motivos, mas especialmente porque o ex-presidente tem uma idade avançada (completa 78 anos em junho), corre o risco de ser preso ainda durante a campanha e não poderá tentar a reeleição em 2028 (segundo a constituição dos EUA, nenhuma pessoa pode cumprir mais de dois mandatos presidenciais).
Uma pesquisa informal realizada durante o CPAC apontou um empate entre dois aspirantes a vice – o empreendedor de biotecnologia Vivek Ramaswamy e a governadora da Dakota do Sul, Kristi Noem, que receberam 15% dos votos.
A ex-deputada do Havaí Tulsi Gabbard ficou em terceiro lugar (com 9%), seguida pelo senador da Carolina do Sul Tim Scott (8%) e a deputada de Nova York – também líder republicana na Câmara – Elise Stefanik (8%).
O deputado da Flórida Byron Donalds obteve 7% dos votos e a candidata ao Senado pelo Arizona, Kari Lake, 6%. Ficaram em último lugar, com 5% cada, o governador da Flórida, Ron DeSantis, a governadora do Arkansas, Sarah Huckabee Sanders, e o ex-secretário nacional de Habitação e Desenvolvimento Urbano Ben Carson.
Lula, Biden e Jinping promovem "táticas de estado policial", segundo a cúpula do fórum
Mas o CPAC 2024 não girou apenas em torno dos convidados populares. Assuntos como as guerras em curso no mundo, a imigração em massa, a influência da ONU sobre os países e a perseguição de determinados governos a seus opositores políticos também tiveram espaço nos painéis.
Com relação ao conflito na Ucrânia, os conservadores são enfáticos: é hora de reduzir o envio de recursos americanos para o exército de Volodymir Zelensky.
"Não votei para mandar dinheiro para os ucranianos porque sei que eles não podem vencer. Trump sabe que não há vitória para a Ucrânia. Ele pode negociar com Putin", afirmou o senador Tommy Tuberville, do Alabama.
Outro representante republicano no senado, JD Vance, de Ohio, deu a posição do partido sobre os imigrantes que não param de chegar aos EUA.
"Biden está invadindo o país com pessoas que ele sabe que vão votar desproporcionalmente nos democratas. Esses caras inundam o país com milhões de indivíduos que não deveriam estar aqui, e destroem o poder de voto dos cidadãos em nossa própria república", disse.
No encerramento da programação, Matt Schlapp – presidente da União Conservadora Americana e principal dirigente do CPAC – anunciou que a cúpula internacional da conferência havia aprovado três resoluções de âmbito global.
O documento estimula as nações a não financiar mais a Organização Mundial da Saúde (pelo fato de a instituição "obedecer a opressiva agenda da elite global"), apoia o direito de defesa do Estado de Israel contra o Hamas e repudia atitudes autoritárias dos líderes da China, Brasil e Estados Unidos.
"Condenamos as táticas de estado policial de Xi Jinping, Lula da Silva e Joe Biden. Condenamos todas as suas iniciativas para silenciar, assediar juridicamente e aprisionar seus principais oponentes políticos. Esses são crime de interferência eleitoral", diz o texto.
Evento tem recebido críticas por mudanças em seu perfil e domínio de Trump
Realizado anualmente desde 1974 (quando Ronald Reagan, que se tornaria presidente americanos seis anos depois, fez um discurso em prol da união dos conservadores americanos), o CPAC foi concebido como um espaço para discussões, debates e networking, em que os participantes compartilham suas perspectivas, articulam sua visão política e planejam estratégias.
Nos últimos anos, no entanto, o fórum vem recebendo duras críticas de uma parte da direita do país. A edição recém-encerrada, por exemplo, foi acusada de glorificar a Invasão do Capitólio, centrar-se demais na figura de Donald Trump e disseminar uma infinidade de teorias conspiratórias (principalmente no tocante à suposta manipulação da eleição presidencial de 2020, vencida pelos democratas).
Sem contar as acusações de agressão sexual contra o organizador Matt Schlapp. Em 2022, ele foi denunciado por molestar um colaborador durante uma viagem de carro. E, segundo o jornal Washington Post, outras duas pessoas incriminaram Schlapp por má conduta em anos anteriores.
"Eu não reconheço mais [a conferência]", disse Al Cárdenas, ex-presidente da União Conservadora Americana, à rede de tevê CNN. Para ele, as mudanças no perfil do evento se refletem no ideário do Partido Republicano. "Tudo gravita em torno de Donald Trump. Seremos um partido do isolacionismo e de teorias da conspiração, que se posiciona contra os americanos comuns."
Outra figura que já foi bastante atuante no CPAC, o advogado Heath Mayo – fundador da entidade conservadora Principles First – também faz essa ligação. Em entrevista à emissora alemã DW, ele disse temer por uma nova vitória de Trump, que transformará para sempre o partido.
Já David Gopel, estrategista da campanha do republicano Mitt Romney em 2012, lembrou, em entrevista à CNN, que o CPAC era uma vitrine significativa para os políticos – mas "deixou de ser uma organização séria".
"É uma plataforma de caos para perturbar o establishment. Embora, cada vez mais, eles sejam o establishment", afirmou, destacando, que, não à toa, muitas lideranças em ascensão evitaram a conferência neste ano.
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