Não é de hoje que os principais vestibulares brasileiros abriram o leque das chamadas “leituras obrigatórias” exigidas dos estudantes para as provas de Português. Antes dedicadas somente aos clássicos literários, as listas de livros anuais cada vez mais trazem autores contemporâneos, regionais e dos grupos ditos minorizados da sociedade – além de obras que não podem ser consideradas exatamente literatura, no sentido estrito do termo, como filmes e músicas.
Em 2018, por exemplo, o concurso da Universidade de Campinas (Unicamp) incluiu o disco ‘Sobrevivendo no Inferno’ (1997), do grupo de rap paulista Racionais MCs, na relação de materiais da categoria Poesia. Dois anos depois, outro álbum musical, ‘Elis & Tom’ (1974), figurou entre os conteúdos do exame da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS). Até a funkeira Valesca Popozuda teve sua faixa ‘Beijinho no Ombro’ (2014) indicada para uma das fases do vestibular da Universidade de Brasília (UnB), em 2016.
Segundo os organizadores dos processos seletivos, essa ampliação busca promover um diálogo com a realidade brasileira e ampliar a perspectiva dos alunos a partir da compreensão de diferentes linguagens. Um expediente nem sempre aprovado por parte da comunidade acadêmica, preocupada com o abandono gradual do cânone literário e do critério “qualidade” nas escolhas das obras trabalhadas.
Esse receio aumentou neste fim de ano, quando a Fuvest (Fundação Universitária para o Vestibular), notória por organizar as provas para o ingresso na Universidade de São Paulo (USP), anunciou uma nova lista de livros para as edições de 2026, 2027 e 2028. Composta exclusivamente por títulos de autoria feminina, a relação foi formulada, de acordo com a instituição, para reparar “décadas de invisibilidade pelo fato de as escritoras serem mulheres”.
Os homens só retornam ao concurso em 2029, e representados por apenas três nomes: Machado de Assis, Erico Verissimo e o moçambicano Luís Bernardo Honwana. Até lá, os candidatos serão obrigados a ler Clarice Lispector, Conceição Evaristo, Djaimilia Pereira de Almeida, Julia Lopes de Almeida, Lygia Fagundes Telles, Narcisa Amália, Nísia Floresta, Paulina Chiziane, Rachel de Queiroz e Sophia de Mello Breyner Andresen.
Os dois principais jornais de São Paulo reagiram com contundência contra a medida, apesar de possuírem vieses ideológicos diferentes. O Estadão, mais conservador, acusou a Fuvest de “amesquinhar um exame que deveria medir o grau de conhecimento dos alunos, não seu nível de engajamento a determinada ‘causa’’’.
“Ao abolir grandes autores da língua portuguesa do rol de leituras obrigatórias para ingresso na USP durante nada menos que três anos, a fundação contribui para o envenenamento de uma discussão de fundo – as deficiências programáticas da educação básica e o baixo nível de leitura dos brasileiros – em nome de uma agenda de natureza eminentemente ideológica”, diz um trecho do editorial publicado no início deste mês.
Mesmo a progressista Folha de S. Paulo abriu espaço para os descontentes. Na reportagem intitulada ‘Escritoras criticam lista do vestibular da USP só com livros de mulheres’, o jornal ouviu figuras como a professora Juracy Assmann Saraiva, pós-doutora em Teoria Literária pela Unicamp e pesquisadora da formação de leitores no ensino médio. Para Juracy, a resolução “é preconceituosa em relação às próprias escritoras mulheres, cujas obras não dependem de um processo seletivo de vestibular para serem valorizadas e afirmarem sua qualidade estética”.
A mesma Folha ainda publicou outra matéria sobre a dificuldade de acesso aos livros exigidos. Segundo a apuração, muitos dos títulos não estão disponíveis nem para a venda – tampouco fazem parte do acervo das bibliotecas públicas.
Mais de 100 professores assinaram carta aberta contra a nova relação da Fuvest
Mas a reação mais consistente à decisão da Fuvest foi organizada dentro da academia. Na última quinta-feira (14), mais de 100 professores de todo o país, incluindo docentes da própria USP, publicaram uma carta aberta contrária à nova lista.
“A adoção de um único critério para a escolha dos livros desconsidera a especificidade da literatura, com risco de corroborar os novos tempos utilitaristas de desvalorização das linguagens artísticas e, sobretudo, o foco na figura do/a autor/a ou nas camadas mais superficiais do texto”, afirma o documento, assinado por homens e mulheres.
Os signatários também consideram “grave” a retirada de Machado de Assis da relação. E criticam a “perda do lugar da literatura”, já que o livro ‘Opúsculo Humanitário’ (1853), de Nísia Floresta (1810-1855), pioneira do feminismo brasileiro, não é uma obra de ficção – o título recupera a história da condição feminina através dos tempos e defende a educação das mulheres como premissa fundamental para o progresso das sociedades.
“A decisão de substituir as já tradicionais listas para o vestibular por obras de outros gêneros discursivos trará impacto ao campo educacional. A poesia, a prosa de ficção, a crítica, a teoria literária e os estudos literários comparativos serão transformados em saberes secundários, com risco de seu gradual desaparecimento do sistema de ensino”, afirmam os docentes.
Em entrevista à Gazeta do Povo, o professor Gustavo Monaco, diretor-executivo da Fuvest, comentou o “manifesto” divulgado pelos acadêmicos. “Estamos num ambiente universitário e todo debate é bem-vindo. Mas bate-se muito, por exemplo, na ausência do Machado de Assis. Não é a primeira vez que ele fica de fora da lista. Por que, lá atrás, ninguém reclamou?”
Ele também coloca em xeque a crítica com relação à inclusão de um livro de não ficção. “Isso já havia sido pré-anunciado no início do ano, por que o espanto agora? São oito obras de ficção e apenas uma de não ficção. Em outras edições, chegamos a ter cinco de ficção”, diz.
Sobre a acusação de “utilitarismo”, Monaco é enfático: “Não vou comentar isso agora. A prova é que vai dizer por si. Mas não há nenhum viés utilitarista ou ideológico no nosso vestibular”.
“A lista em si não diz nada. A questão é quem você coloca nela”, diz especialista
Talvez a preocupação dos acadêmicos possa parecer exagerada. Mas como a Fuvest costuma ditar tendências para outros concursos no Brasil, é possível que logo outras instituições adotem modelos semelhantes em suas listas de leituras obrigatórias.
“A palavra ‘tendência’ é justamente uma chave para pensar essa situação”, diz a professora Patrícia Cardoso, do Departamento de Literatura e Linguística da Universidade Federal do Paraná (UFPR). “Quando você tenta seguir uma corrente, é como se estivesse dizendo: ‘Olha como estamos atentos!’. É possível que haja um elemento midiático nessa escolha.”
Para Patrícia, a valorização do papel das mulheres na literatura depende exclusivamente da qualidade literária do texto que elas produziram. “A lista em si não diz nada. A questão é quem você coloca nela”, afirma a professora, doutora em Teoria e História Literária.
Ela reconhece o vigor da maioria das obras selecionadas e destaca, positivamente, a introdução de três autoras estrangeiras lusófonas (Djaimilia Pereira de Almeida, Paulina Chiziane e Sophia de Mello Breyner Andresen). No entanto, acredita que Nísia Floresta e Narcisa Amália estão situadas “lateralmente” no quadro da literatura brasileira.
Coordenador da área de Literatura da rede de colégios Bom Jesus – e, portanto, responsável pela preparação de estudantes para o vestibular –, o professor Guilherme Shibata vê a nova relação de livros da Fuvest como “uma provocação interessante”.
“Toda lista é um olhar, um recorte. Não é um the best of de todos os tempos. Se fosse assim, será que leríamos os brasileiros? Ninguém estuda a ‘física brasileira’. Além do mais, não vamos deixar de trabalhar o Machado de Assis no ensino médio porque não entrou na prova para a USP”, diz.
De acordo com ele, o vestibular é o menor dos problemas enfrentados pela educação no Brasil. “Não estou preocupado com guerra ideológica, e sim com a formação de leitores”, afirma, lembrando dos baixos índices de leitura registrados no país.
Já a professora e gestora pública Claudia Costin (ex-diretora de Educação do Banco Mundial e ex-ministra da Administração e Reforma no governo de Fernando Henrique Cardoso) acredita que uma seleção de leituras exclusivamente de autoria feminina é impositiva e corre o risco de causar o efeito oposto ao desejado pela USP.
“Entendo a motivação e sou a favor de várias ações afirmativas, como as cotas para alunos egressos de escolas públicas no ensino superior. Mas não achei a nova lista uma boa ideia, pois ela não busca avaliar a aptidão dos alunos e gera uma resistência em certos de setores da sociedade”, diz Claudia, que atualmente preside o Instituto Singularidades – entidade sem fins lucrativos voltada para a formação de professores e ligada ao Instituto Península, organização social mantida pela família do empresário Abílio Diniz.
Claudia ainda destaca que a grande maioria dos docentes no Brasil é do sexo feminino. “Nesse sentido, uma ação mais inclusiva seria ter mais homens lecionando, para que os rapazes também queiram ser professores”, afirma a educadora, que não aposta na irradiação da proposta da Fuvest para outros concursos no futuro. “Ouvi muito críticas nos últimos dias. Acho que isso não vai virar uma tendência.”
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