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O Papa Bento XVI se despede no lance de escadas antes de pegar um voo no aeroporto de Barajas em Madri, Espanha, 21 de agosto de 2011
O Papa Bento XVI se despede no lance de escadas antes de pegar um voo no aeroporto de Barajas em Madri, Espanha, 21 de agosto de 2011| Foto: EFE

De alguma forma, o papa João Paulo II parecia saber o destino do homem que por vinte e quatro anos foi seu braço direito e a mente brilhante que o ajudou a erguer um dos pontificados mais marcantes na história da Igreja Católica. A transformação do cardeal Joseph Ratzinger no papa Bento XVI está ligada de forma indelével ao papel que desempenhou junto ao seu santo antecessor na condição de prefeito para a Congregação da Doutrina da Fé e conselheiro pessoal. Por três vezes o fiel cardeal pediu oficialmente para se aposentar, ouvindo um fraterno “não” do pontífice polonês em todas as tentativas. Foi assim, sendo mantido na ativa meio que a contragosto, para além do que se costumava permitir, que Ratzinger entrou na fase mais importante de sua vida aos 78 anos, herdando um trono que ele conhecia bem e por isso mesmo nunca desejou.

Neste sábado (31), o mundo se despediu do papa mais longevo de todos os tempos, depois de apresentar uma piora repentina de saúde nos últimos dias. Seu pontificado, no entanto, durou pouco menos de oito anos. Aos 95, enfim Bento XVI completou a corrida, tendo “guardado a fé” (II Tim 4,7) como poucos fizeram com tamanha maestria antes dele. De acordo com o Vaticano, Joseph Ratzinger havia recebido a extrema-unção - ou sacramento dos enfermos - pouco antes de sua morte.

Selecionar os fatos mais marcantes de uma vida tão extensa e repleta de realizações é um desafio assustador, mas ao menos podemos nos inspirar no exemplo do próprio Ratzinger que, não sem temor, encarou e cumpriu a tarefa de prosseguir e aprofundar o trabalho de um gigante.

O 265º papa da Igreja Católica nasceu na pequena cidade bávara de Marktl am Inn, em 1927, num Sábado de Aleluia, sendo batizado no mesmo dia. Com um pai policial, ele passa os primeiros dez anos de sua vida viajando muito e a família acaba adotando como lar a cidade de Traunstein, próximo da fronteira com a Áustria. É ali onde ele passa a maior parte de sua infância e adolescência, sempre acompanhado de seus irmãos mais velhos, Maria e Georg. Ambos se fizeram muito presentes na vida de Ratzinger mesmo após sua mudança para Roma.

Chega a década de 1940 numa Europa em ebulição, assombrada com as ameaças de uma nova guerra e sua Alemanha ocupa o centro das tensões, graças ao regime totalitário imposto pelo novo fuhrer. Contudo, a educação e a fé transmitidas por sua família preparam Joseph para as dificuldades que viriam em seguida.  Em seu livro de memórias, Ratzinger conta que viu os nazistas açoitarem o pároco da capela que frequentava antes de começar a celebração da missa. Pouco tempo depois, seguindo a sina de todo garoto alemão daquele período, foi obrigado a participar de atividades da Juventude Hitlerista.

O horror de um novo conflito mundial se concretiza, bem como o derramamento de sangue que todos sabiam que ocorreria. Em 1945, nos últimos meses da Segunda Guerra, o regime que o jovem Joseph detestava começa a fraquejar e impõe que estudantes internos devem trabalhar para mantê-lo. “Assim, o pequeno grupo de seminaristas da minha classe – nascidos em 1926 e 1927 – foi convocado para a Flak, em Munique”. Flak era o nome dado às baterias de defesa antiaéreas dos nazistas. Sobre esse período, sua autobiografia não diz muito, mas revela que foram dias amargos: “não preciso contar detalhadamente os muitos aborrecimentos que o tempo na Flak trouxe consigo, especialmente para uma pessoa tão pouco militar como eu”.

De fato, sua verdadeira luta, aquela na qual investiria todos os seus esforços e potências, viria décadas depois, servindo ao verdadeiro Senhor, não a um tirano. Ratzinger acaba por desertar e volta para casa. Mais tarde é preso por soldados norte-americanos e solto com o fim da guerra.

Com o pesadelo nazista chegando ao fim, surge a possibilidade de retomar o caminho rumo ao sacerdócio, sendo ordenado em 29 de junho de 1951, aos 24 anos. Seguindo uma vocação irresistível ao ensino, começa a lecionar já no ano seguinte, assumindo como professor na Escola Superior de Freising. Dois anos depois, torna-se doutor em teologia, com uma tese focada na obra de Santo Agostinho. Posteriormente, só em doutorados honoris causa viriam outros dez.

A partir desse ponto, sua vida acadêmica não parou mais, tendo produzido novos escritos inclusive após se tornar papa emérito. Como professor de teologia passou por universidades em Bonn, Münster e Tubinga, onde se tornou catedrático de Dogmática e História do Dogma na Universidade de Ratisbona, da qual também foi vice-reitor.

Estamos na década de 60, quando o papa João XXIII convoca o Concílio Vaticano II, um importante evento que reuniu bispos de todo o mundo e cuja última edição havia ocorrido há quase um século. O encontro que teve consequências tremendas para a Igreja das próximas décadas foi assistido de perto pelo padre Ratzinger que foi escolhido para atuar como perito, ao lado do cardeal Joseph Frings, arcebispo de Colônia. Depois, o destaque obtido o leva a desempenhar cargos importantes na Conferência Episcopal Alemã e na Comissão Teológica Internacional.

Em 1977, o papa que encerra o concílio, Paulo VI, nomeia o prodigioso sacerdote como arcebispo de Munique e Freising, num salto de etapas pouco comum, já que para arquidioceses importantes o padrão era o de se nomear bispos ou bispos auxiliares, mas não padres. A ascensão na hierarquia ganharia um grau a mais no mesmo ano, quando o pontífice lhe concede o barrete escarlate. Foi quando o alemão recebeu o primeiro título pelo qual ficará conhecido em todo o mundo, atraindo amigos e inimigos: cardeal Ratzinger.

 Papa Bento XVI, durante a missa celebrada no aeródromo Cuatro Vientos em Madrid, Espanha, 21 de agosto de 2011.  EFE/Javier Lizon
Papa Bento XVI, durante a missa celebrada no aeródromo Cuatro Vientos em Madrid, Espanha, 21 de agosto de 2011. EFE/Javier Lizon| EFE

João Paulo II 

A providência quis que já no ano seguinte à sua chegada ao cardinalato, Ratzinger fosse convocado a colocar em prática o mais precioso dos atributos da função, o de votar no conclave que escolheria o novo papa. Em agosto de 1978 acompanha a eleição do cardeal italiano Albino Luciani, que assumiria o nome pontifício de João Paulo. Passados 33 dias, uma surpresa trágica abala a Igreja e de forma muito particular aos cardeais que participaram daquele conclave. O papa morre de embolia pulmonar, deixando a sede vacante pela segunda vez no mesmo ano, o que exige dos cardeais uma nova eleição.

No mês de outubro, a maioria dos votantes opta dessa vez por um não italiano, o primeiro em 455 anos, cuja relativa juventude também chamou a atenção dos observadores. Aos 54 anos, Karol Wojtyła, o cardeal arcebispo de Cracóvia, na Polônia, se tornava o papa João Paulo II. Poucos anos depois, a vida do cardeal Ratzinger seria profundamente modificada pelas escolhas do novo sucessor de Pedro.

Em 1980, a inteligência e a cordialidade de Ratzinger se sobrassaem novamente durante o sínodo dos bispos que discutiu o tema “A missão da família cristã no mundo contemporâneo”, evento no qual ocupou o papel de relator. Um ano depois, o papa polonês o nomeia prefeito da Congregação para Doutrina da Fé, tornando-o a máxima autoridade abaixo do papa no que diz respeito ao ensino da Igreja nas questões de fé e moral. Posteriormente, biógrafos de João Paulo II relatarão que ele raramente faria algum discurso ou publicaria qualquer texto sem que o mesmo não tivesse sido revisado por Ratzinger.

A lealdade do cardeal alemão ao papa e o zelo pela correta doutrina eram tão notórias que seus críticos logo o apelidariam de Rottweiller de Deus, o que remetia muito mais à sua origem germânica e ao seu dever de guardião da fé do que ao seu temperamento pacato. Os ataques à ortodoxia defendida por Ratzinger cresceram sobremaneira após 1984, quando foi publicada com sua assinatura a instrução Libertatis nuntius, na qual são formalmente condenados alguns aspectos da Teologia da Libertação, corrente teológica popular na América Latina e que interpretava a fé cristã a partir da visão marxista, frequentemente substituindo pontos cruciais da doutrina católica por conceitos mais úteis ao pensamento revolucionário.

Expor e criticar a instrumentalização da Igreja por uma ideologia foi um ato corajoso que lhe custou caro. Muito das narrativas difamatórias usadas contra Bento XVI após sua eleição como papa eram, na verdade, versões recicladas dos insultos emitidos por teólogos da década de 80 diretamente afetados pelo documento e que nunca superaram seu rancor.

Catecismo 

Relevantes analistas católicos apontam hoje que, ao menos em parte, o avanço da Teologia da Libertação podia ser explicado pela confusão instaurada na Igreja após o Concílio Vaticano II e a reforma litúrgica que veio em seguida. Os mais tradicionalistas não hesitam em depositar a culpa no concílio em si, enquanto outros – Ratzinger entre eles – apontavam para as interpretações enviesadas dos documentos pastorais emitidos naquela ocasião. Faltava clareza quanto ao que de fato a Igreja dizia sobre uma extensa lista de questões e nesse quesito – clareza - Ratzinger sempre foi um especialista. Foi então que João Paulo II confiou a ele a presidência da comissão encarregada de produzir um novo catecismo para a Igreja, uma espécie de compêndio que explicasse de forma didática em que consiste a fé católica, fazendo uso de linguagem acessível ao homem contemporâneo, mas fiel à Tradição de dois mil anos.

A tarefa consumiu boa parte do tempo e energia do cardeal entre os anos de 1986 e 1992, quando o resultado do intenso trabalho foi enfim publicado. Em pouco tempo, o Catecismo da Igreja Católica escrito por Ratzinger e seus colaboradores se tornaria o manual de cabeceira de todo católico que buscasse crer e viver conforme ensina a Igreja fundada por Cristo e governada pelos sucessores dos apóstolos. O texto foi traduzido para inúmeros idiomas e posteriormente ganhou novas versões, algumas mais resumidas, na forma de perguntas e respostas, outras, adaptadas para jovens e crianças. Para muitos, o Catecismo da Igreja Católica é seu maior e mais duradouro legado espiritual.

A despedida do amigo 

A chegada do novo milênio trouxe para Ratzinger a esperança de que sua missão estivesse perto de ser concluída e, quem sabe, logo poderia enfim dedicar-se a uma vida mais contemplativa, ou voltar à vida acadêmica que amava, o que lhe permitiria escrever os livros que havia planejado há muito tempo, mas jamais conseguira graças à agenda intensa do papa e as consequentes tarefas que caíam sobre sua mesa. No entanto, como sabemos, o desenrolar da história não foi bem assim.

Em 2002, um João Paulo II já bastante debilitado pelo Parkinson aprova a eleição de Ratzinger como decano do colégio cardinalício, posição que lhe permitiria exercer uma série de funções importantes após a morte do pontífice, fato que ocorreria três anos mais tarde, em 2 abril de 2005. No dia 8, numa Praça de São Pedro completamente lotada, incluindo a presença de chefes de estado de todo o mundo, é o próprio Ratzinger quem celebra o funeral do papa e amigo que mudou sua vida.

Poucos dias depois, o cargo de decano do colégio cardinalício impunha também sobre ele o dever de presidir a missa de abertura do conclave que definiria o sucessor de João Paulo II. Na homilia, uma mensagem forte para o escolhido, seja lá quem fosse, sobre as nefastas consequências do relativismo, tema que se faria presente por todo o seu pontificado.

A eleição 

Quando as portas da Capela Sistina se fecharam, as listas de papabile fervilhavam na imprensa e nas casas de apostas. O nome de Ratzinger não constava em muitas delas, principalmente por causa dos seus 78 anos de idade. Outros, ainda mais equivocados, achavam impossível que os cardeais escolhessem alguém que, de certa forma, seria considerado mais conservador do que o próprio João Paulo II.

A torcida contrária não surtiu efeito e no dia 19 de abril de 2005, logo após a subida da fumaça branca que anuncia eleição de um novo papa, a figura que surge na sacada do Palácio Apostólico é a do cardeal Ratzinger, ou melhor, Bento XVI, o nome que assume fazendo referência, principalmente, ao padroeiro da Europa, São Bento de Núrsia, pai da tradição monástica no Ocidente.

Assim, o intelectual discreto, dotado de uma mente potente, mas comedido e até tímido nos gestos, teria de se acostumar com o clamor das multidões que criavam enormes expectativas a cada aparição do pontífice, em muito, graças às duas décadas de cativantes performances de João Paulo II, um líder nato, agraciado com personalidade magnética e muito carisma, qualidades às quais Bento XVI sabia bem que não possuía e que eram inimitáveis.

Ciente do quanto seu velho amigo transformou a figura do que vem a ser um papa, Bento assumiu tentando dar continuidade à forma de pastoreio iniciada pelo polonês: muitas viagens, uso intenso da mídia e eventos de massa. É claro que adaptações foram necessárias, afinal, Wojtyła inventou aquela rotina aos 54, mas Bento também foi favorecido pela sorte – ou pela providência? – já que herdou como primeiro megaevento agendado a Jornada Mundial da Juventude em Colônia, Alemanha, sua terra. O encontro reuniu 1,5 milhão de jovens católicos provenientes do mundo todo para celebrar a memória do amado João Paulo II e conhecer o novo líder que logo teria o nome musicado entre palmas e tambores, exatamente como faziam com JP2, o acrônimo predileto com o qual se referiam ao antigo pontífice.

No natal daquele mesmo ano, 2005, seria publicada sua primeira encíclica, Deus caritas est, uma reflexão profunda sobre o amor. A próxima foi dedicada a outra virtude teologal, Spe Salvi, de 2007, sobre a esperança cristã. Na terceira, publicada em 2009, Bento XVI deixa sua contribuição à doutrina social da Igreja. Intitulada Caritas in veritate, o texto faz uma análise da economia contemporânea, critica a divisão crescente entre ricos e pobres e chega a pedir uma verdadeira “autoridade política mundial” que seja preocupada com o bem comum.

Também em 2009 ocorre um de seus gestos mais determinantes na busca por ovelhas desgarradas. O papa retira a excomunhão de quatro bispos ordenados ilicitamente por Marcel Lefebvre, 1988, um arcebispo francês que liderou uma revolta contra as reformas instauradas após o Concílio Vaticano II, especialmente no campo litúrgico. O objetivo era o de facilitar a reconciliação com o grupo fundado por ele, a Fraternidade Sacerdotal São Pio X, mas também não deixava de ser um reflexo da preocupação que o então cardeal Ratzinger demonstrou em vários escritos com a decadência na liturgia católica, a falta de zelo pelo sagrado e o quanto isso afetava até mesmo a fé eucarística, central na vida da Igreja. Essa tentativa de reaproximação foi preparada dois anos antes, sobretudo com o motu proprio Summorum Pontificum, um documento que autorizou o clero de todo o mundo a celebrar, de forma extraordinária, a missa em latim conforme o missal anterior à reforma litúrgica realizada na década de 60, uma demanda preciosa para as comunidades tradicionalistas.

Viagens 

Durante seu pontificado Bento XVI fez 25 viagens apostólicas, aquelas feitas para outros países, fora da Itália. Dessas, destaca-se a visita ao Brasil, 2007, para acompanhar a 5ª Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, ocorrida em Aparecida. Antes de se reunir com os bispos, ele vai à São Paulo, reúne-se com jovens no estádio do Pacaembu e canoniza Frei Galvão, o primeiro santo nascido no Brasil.

Em 2009, cumprindo o que passou a ser visto como obrigatório para todo papa, vai à Jerusalém rezar na igreja do Santo Sepulcro. Em 2012, para renovar a delicada ponte construída por seu antecessor, visita Cuba e se encontra com o ditador Fidel Castro. Na mesma viagem vai ao México, ocasião na qual sofre uma queda, fato posteriormente citado pelo próprio Bento XVI como determinante para a decisão que tomaria no ano seguinte e que surpreenderia o mundo.

Renúncia 

Em 11 de fevereiro de 2013, numa reunião com cardeais, Bento XVI lê a carta de renúncia que havia preparado há meses, afirmando que a partir de 28 de fevereiro daquele ano, a sede de São Pedro ficaria vaga e que deveria ser convocado um novo conclave para a eleição do próximo Sumo Pontífice.

No texto, Bento XVI diz:

“Após ter examinado perante Deus reiteradamente minha consciência, cheguei à certeza de que, pela idade avançada, já não tenho forças para exercer adequadamente o ministério petrino. Sou muito consciente que este ministério, por sua natureza espiritual, deve ser realizado não unicamente com obras e palavras, mas também e em não menor grau sofrendo e rezando.

No entanto, no mundo de hoje, sujeito a rápidas transformações e sacudido por questões de grande relevo para a vida da fé, para conduzir a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor tanto do corpo como do espírito, vigor que, nos últimos meses, diminuiu em mim de tal forma que eis de reconhecer minha incapacidade para exercer bem o ministério que me foi encomendado.

Por isso, sendo muito consciente da seriedade deste ato, com plena liberdade, declaro que renuncio ao Ministério de Bispo de Roma, sucessor de São Pedro, que me foi confiado por meio dos Cardeais em 19 de abril de 2005 (...)”.

Como não podia deixar de ser, o anúncio provocou enorme perturbação na Igreja em todo o mundo e, claro, especulações. Para todos, era bastante compreensível que aos 85 anos manter uma agenda de compromissos como a que um papa tem era bem difícil, portanto, a justificativa seria plausível. O problema estava no ineditismo do ato. Embora houvesse outros casos na história de papas que renunciaram, eles ocorreram séculos atrás e nenhum deles o fez em tempos de paz, de forma completamente livre, como Bento decidiu fazer. Em todos os casos sempre houve o contexto de guerras, deposições, sequestros, enfim, situações trágicas não tão incomuns para governantes da Idade Média.

Dessa vez não era o caso. Bento XVI simplesmente concluiu que não desempenhava mais tão bem suas funções e escolheu abrir mão de um poder único no mundo, de forma totalmente livre, conforme enfatizou tanto na carta de renúncia quanto em entrevistas posteriores, como a que concedeu ao jornalista Peter Seewald, no livro O Último Testamento, publicado em 2017. Para quem não dispõe de uma vida espiritual que dê sentido a tamanho desprendimento, o ato parecia incompreensível, até suspeito. Grupos anticlericais sedentos por ferir a credibilidade da Igreja apontavam para os casos de abusos de menores por padres ocorridos em décadas passadas e relatados sobretudo na Europa e Estados Unidos. Para vinculá-los a pontífice alemão era preciso omitir todas as estruturas eclesiais e procedimentos criados pelo próprio Bento XVI para que crimes horrendos como aqueles não voltassem a ocorrer, incluindo maior punição para culpados e estipulando regras mais rígidas na seleção de candidatos ao sacerdócio.

Por outro lado, a renúncia também provocou reação nas alas mais tradicionalistas da Igreja que variavam entre considerar o ato um erro grave ou uma completa impossibilidade teológica. De fato, mesmo após a eleição do cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio como o sucessor de Bento XVI, houve quem nunca o tenha reconhecido, pois, para eles, supostamente, só poderia haver um papa e este seria Bento XVI até sua morte, independentemente do que fosse proclamado ou formalmente estabelecido. Esses grupos, que o amavam profundamente, foram a verdadeira razão pela qual o agora papa emérito se preocupou tanto em reafirmar que tomou a decisão livremente e que agora havia um novo sucessor de Pedro no trono.

Em 2019, em entrevista ao jornal Corriere della Sera, por exemplo, ele recordou a histórica luta da Igreja Católica para manter sua unidade, destacando que ela sempre esteve em perigo: “Foi assim em toda a sua história. Guerras, conflitos internos, ameaças de cismas. Mas sempre prevaleceu a consciência de que a Igreja é e deve ficar unida. A sua unidade sempre foi mais forte do que as lutas e as guerras internas”. Concluiu afirmando, enfaticamente: “O Papa é um só: Francisco”.

Emérito 

A prudência de Bento XVI e o profundo respeito por seu sucessor - por mais diferentes que fossem e sem compartilhar da mesma proximidade que o unia a João Paulo II - o levaram a optar por uma vida de reclusão, dentro do próprio Vaticano, de modo a não interferir de modo algum no novo pontificado. Assim, a partir do dia em que se tornou emérito, seus dias se assemelhavam aos de um monge. Conforme contou seu secretário pessoal, o arcebispo Georg Gänswein, por ocasião do aniversário de 95 anos, a rotina de Bento XVI no Mosteiro Mater Eclesiae, seu lar final, não mudou muito desde que se mudou para lá, em 2013.

Fisicamente cada vez mais frágil, mas incrivelmente lúcido, o pontífice ancião começava o dia com a missa e as orações do breviário. Depois, o café da manhã, uma pausa, e então se dedicava às correspondências e às leituras da manhã. “De vez em quando, há espaço para a música, até a hora do almoço”, dizia Gänswein, completando que o período da tarde era dedicado a receber eventuais visitas e a recitação do terço durante uma pequena caminhada nos Jardins do Vaticano. À noite, a janta e uma oração antes de se deitar.

Foi assim, contemplativo, vivendo num quarto modesto até demais, que Bento XVI terminou seus dias, livre de todo o poder que somente o líder máximo de 1,3 bilhão de católicos tem ao seu alcance. Serenamente, o genial Joseph Ratzinger, cuja formidável obra deve um dia render-lhe o título de Doutor da Igreja, completa sua Páscoa deixando em todos que o amam a certeza de que profético o lema escolhido para seu episcopado, décadas atrás, só pode ter sido revelado pelo próprio Deus, dada a precisão com que foi cumprido. O “cooperador da Verdade” finalmente descansa e se encontra com aquele que guiou seus quase cem anos de vida dedicados a fazer Cristo ser conhecido, amado e compreendido.

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