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O candidato à presidência Alberto Fernández e a candidata à vice-presidência Cristina Kirchner, acenam a apoiadores durante comício de encerramento de campanha em Rosario, Santa Fé, 7 de agosto, antes das primárias de 11 de agosto de 2019
O candidato à presidência Alberto Fernández e a candidata à vice-presidência Cristina Kirchner, acenam a apoiadores durante comício de encerramento de campanha em Rosario, Santa Fé, 7 de agosto, antes das primárias de 11 de agosto de 2019| Foto: AFP PHOTO / NOTICIAS ARGENTINAS

“Estes são números realmente inexplicáveis para todos, inclusive para o Kirchnerismo", resumiu o jornalista e escritor argentino Jorge Lanata ao comentar o resultado das primárias obrigatórias de seu país que mostraram uma vantagem de 15 pontos percentuais da chapa Alberto Fernández-Cristina Kirchner sobre o candidato à reeleição, o presidente Maurício Macri. Uma supremacia que nenhuma pesquisa eleitoral conseguiu prever, nem mesmo o próprio Fernández, que acreditava em uma vantagem de até 10 pontos. Se o resultado se repetir em 27 de outubro, Fernández será eleito presidente ainda em primeiro turno.

Para Macri, o resultado representa uma reprovação de suas políticas econômicas e o seu fracasso em promover o crescimento da Argentina - que, aliás, não é culpa exclusiva dele, já que o país foi atingido em cheio por uma crise de países emergentes no ano passado.

“Toda eleição é uma mensagem e nós a escutamos. Os votos que não nos acompanharam representam uma raiva acumulada do duro processo econômico que tivemos que passar nestes três anos e meio”, reconheceu Macri nesta segunda-feira.

Para Kirchner, o resultado representa um sinal de que sua jogada de sair dos holofotes e concorrer como vice foi bem sucedida. Com a estratégia de colocar como cabeça de chapa um nome um pouco mais inclinado ao centro do que o seu, a ex-presidente e senadora conseguiu aumentar seu teto de votos.

Macri tentou fazer o mesmo: rumar ao centro com um vice peronista e antikirchnerista, Miguel Pichetto. O resultado da primária mostra, porém, que essa estratégia não foi tão efetiva quanto a de seus opositores. Segundo o analista político da consultoria Prospectiva Gabriel Kohlmann, Macri intensificou o discurso neoliberal para a economia, até porque é essencial para seu governo e relacionamento com o Fundo Monetário Internacional (FMI), e isso pode ter assustado a população, já que, em um primeiro momento, essas medidas pesam no bolso e têm um efeito danoso para o país - apesar de haver expectativas de melhorias no médio e longo prazo.

A vantagem é difícil de ser superada. O presidente perdeu em importantes redutos eleitorais, com destaque para a província de Buenos Aires, onde a diferença entre os principais candidatos foi ainda maior (29% contra 50% de Fernández).

Macri pode tentar duas vias para tentar pelo menos levar a disputa para o segundo turno, na opinião de Kohlmann: acirrar o discurso contra os kirchneristas, focando nas críticas à Cristina e os processos de corrupções nos quais ela é réu;  ou tentar consolidar-se como uma opção de centro. Essa alternativa exigiria um esforço de articulação muito grande por parte de Macri e Pichetto, com mais chances de dar errado do que certo. Pichetto poderia tentar convencer o terceiro colocado das primárias, o candidato Roberto Lavagna, que obteve 8% dos votos, a apoiar a chapa Juntos Pela Mudança, mas as declarações dadas pelas lideranças da coalizão que se intitula a “terceira via” não dão a entender que isso possa ocorrer. Também seria muito arriscado para o futuro político de Lavagna desistir de disputar as eleições depois de ter angariado mais de dois milhões de votos. Ou se fosse esse o caso, não seria prudente se unir a uma chapa que tem grandes chances de sair perdedora. Nesse sentido, é preciso lembrar que Fernández deve ter o apoio de coalizões menores que não conseguiram obter o mínimo de 1,5% dos votos válidos para disputar as eleições de outubro, como é caso do Movimento ao Socialismo, e talvez de outras que desistam de participar do pleito de outubro por seu fraco desempenho, abaixo de 3%.

Uma Argentina sob Fernández

O mercado financeiro reagiu ao que tende a ser uma provável vitória da chapa kirchnerista em outubro. No fim de segunda-feira, o dólar havia subido 20%, chegando a 57,30 pesos após intervenção do Banco Central argentino, a taxa de juro básica subiu a 74% e a bolsa de valores do país despencou 35%. A avalanche já era esperada em caso de vitória de Fernández nas primárias por ampla margem. Além da conexão com a ex-presidente Cristina Kirchner, as políticas econômicas que vêm sendo propagandeadas por Fernández pouco agradam o mercado. “Ele promete, por exemplo, desvalorizar o peso, que de alguma forma incentiva a exportação, e essa é uma medida bem heterodoxa. Também tende a aprofundar políticas de apoio social e políticas econômicas mais protecionistas, atendendo a pedidos da indústria argentina, em especial a automobilística, que tem uma forte relação com a Kirchner”, explicou Kohlmann.

Macri já está tentando usar essa reação do mercado financeiro para sua campanha. “O que aconteceu hoje é uma mostra do que poderá acontecer”, disse. Por outro lado, sua governabilidade ficará muito mais debilitada daqui em diante, dando mais munição para a oposição. Os dois lados, portanto, poderão capitalizar em cima do desastre financeiro desta segunda-feira.

Outra questão que preocupa economistas é o compromisso de Alberto Fernández com o FMI. O candidato já disse que seu interesse é revisar o acordo, porque, segundo ele, a Argentina não tem condições de pagar sua dívida ao custo de uma economia paralisada onde as “pessoas ficam empobrecidas todos os dias”, disse o candidato ao jornal La Nación. O economista Matías Kulfas, assessor de confiança de Fernández, reforçou essa intenção em entrevista ao jornal Clarín nesta segunda-feira. Ele disse que a chapa kirchnerista vai cumprir com a dívida externa, mas tentará modificar o acordo. “Não porque estamos em desacordo com os objetivos, mas justamente porque não os estamos alcançando”. Fernández, ao visitar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na cadeia em julho, disse também que pretende revisar o acordo comercial do Mercosul com a União Europeia.

Além de ter que lidar com o FMI, um possível governo Fernández enfrentaria um Mercosul pouco amigável. Segundo Kohlmann, com os kirchneristas de volta ao poder, muito provavelmente haveria uma reversão dos avanços institucionais dentro do bloco econômico, já que seu governo seria mais protecionista do que o de Macri. “Kirchner é muito próxima ao setor automotivo e ele tende a pressioná-la a travar acordos pela liberalização dos mercados entre os dois países, portanto haveria uma reversão dos avanços que já foram feitos entre os governos de Macri e Bolsonaro”. Da mesma maneira, a relação diplomática entre os países deve piorar se Fernández for eleito. O presidente Jair Bolsonaro defende abertamente a reeleição de Macri e chegou a dizer nesta segunda-feira que a Argentina pode virar uma Venezuela se a “esquerdalha” - os kirchneristas - voltar ao poder. Apesar disso, a retórica deve desinflamar após o período eleitoral, já que a Argentina é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil.

Para o historiador Virgílio Caixeta, professor da Universidade de Brasília, um possível governo Fernández não deve adotar uma postura revanchista com o Brasil, pelo fato de o atual governo brasileiro ter simpatia pelo outro lado, porque o acirramento das posições não seria vantajoso do ponto de vista econômico e diplomático. "A Argentina depende de uma intensificação do Mercosul para tentar sair da crise", afirmou Caixeta. E como o Brasil também não tem tido um desempenho econômico satisfatório, é provável que os países adotem uma abordagem mais pragmática na economia. "O apuro econômico, principalmente do lado argentino, faria com que os dois países buscassem ter pelo menos uma relação cortês, ainda que não fosse a preferência ideológica de nenhum dos dois lados", pontuou Caixeta.

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