O ditador da Rússia, Vladimir Putin, já disse que considera o fim da União Soviética “a maior catástrofe geopolítica do século XX”. Nesse sentido, deve ter experimentado uma sensação agradável de nostalgia ao visitar em 19 de junho a Coreia do Norte pela primeira vez em 24 anos e ser recebido na capital Pyongyang pelo também ditador Kim Jong-un.
O líder norte-coreano preparou uma grande festa na praça Kim Il-sung, que tem o nome do avô dele, fundador da Coreia do Norte: um grande tapete vermelho foi estendido para a passagem dos dois ditadores; faixas enormes com as cores das bandeiras dos dois países foram penduradas nos prédios monumentais da praça; imensos retratos com os rostos de Putin e Kim fizeram as crianças que seguravam balões e pequenas bandeiras, os militares que desfilavam e a plateia parecerem formigas em comparação.
Foi um evento que lembrou muito os imensos desfiles da era stalinista na Rússia, quando grandes retratos do ditador Josef Stálin eram carregados ao lado de retratos igualmente gigantescos de Lênin, Marx e Engels. Mas quais foram os significados por trás da recepção norte-coreana a Putin?
Ericson Straub, professor do curso de design da Escola de Belas Artes da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), explicou em entrevista à Gazeta do Povo que a estética da propaganda soviética, que acabou servindo de base para a comunicação de outros países comunistas, teve dois momentos distintos.
O momento inicial foi a década seguinte à Revolução Russa de 1917, quanto toda a comunicação gráfica da nascente União Soviética foi conduzida por artistas e intelectuais (como El Lissitzky e Alexander Rodchenko) do chamado construtivismo russo, que adotavam uma estética minimalista.
“Alguns continuaram depois que Stálin chegou ao poder [depois da morte de Lênin, em 1924], mas a maioria dos que participaram do construtivismo foi embora, a maioria para a Alemanha. Eles eram socialistas, mas não concordavam com a forma do Stálin conduzir [o país]”, explicou Straub.
Poucos anos depois, Stálin promoveu mudanças na estética da comunicação visual soviética, ao proibir o abstracionismo e abrir o caminho que levaria ao chamado culto à personalidade.
“Em 1928, é criado o movimento Realismo Socialista, que basicamente retratava aquela coisa do povo forte, trabalhando, alegre, a Rússia industrializada, que era uma mentira. Era um ‘realismo’ que não era verdade, criaram toda uma retórica visual que não correspondia [à realidade]. E também mudou a estética, não era mais minimalista como o construtivismo”, detalhou Straub.
“O Stálin se intitulou o grande líder, o professor do povo soviético, o pai da nação, e surgiu esse culto [à imagem], como visto também na Coreia do Norte, na China”, afirmou o professor.
Mantendo algumas características do construtivismo russo, mas adaptando-as para o Realismo Socialista, Stálin criou uma simbologia que acabou se tornando referência para outros tiranos, como Hitler e Mussolini.
“A Coreia do Norte é um novo Realismo Socialista, com uma linguagem contemporânea, embora não seja tão nova assim. O que ele vende é uma realidade totalmente utópica para controlar, é a mesma lógica, com essa imponência, coisas grandes, monumentais, grandes espaços”, apontou Straub.
Dessa forma, os imensos retratos, como os vistos na recepção de Kim a Putin, têm o claro objetivo de destacar o líder acima de todos os outros.
“Isso é chamado de hierarquia das proporções: ela realça o que é mais importante. Você tem uma imagem do Stálin, do Kim Jong-un, seja quem for, muito grande e o restante das pessoas bem menor. O significado é: ‘Eu sou muito mais importante que você’”, justificou Straub.
Significados políticos buscados por Kim e Putin
Na parte política, a demonstração de força da grande festa de recepção de Kim a Putin teve o objetivo de realçar o antagonismo ao Ocidente, da mesma forma como este era o inimigo do comunismo durante a Guerra Fria.
As ditaduras da Rússia e da Coreia Norte são alvos de sanções ocidentais, e apostam na parceria para driblar as dificuldades que essas punições proporcionam: na área militar, segundo relatos, isso se traduziria em transferência de tecnologia militar russa para Pyongyang, que retribuiria com envio de munições para Moscou manter sua guerra contra a Ucrânia.
No dia do grandioso evento na Coreia do Norte, Kim e Putin assinaram um acordo de defesa mútua, por meio do qual as duas ditaduras se comprometeram a ajudar a outra em caso de agressão de outros países.
Para enfatizar essa rivalidade com o Ocidente, tanto russos quanto norte-coreanos têm recorrido cada vez mais a grandes eventos para demonstrar força.
Putin, que manteve os tradicionais desfiles do Dia da Vitória, nos quais a Rússia celebra a vitória sobre os nazistas em 1945, também tem realizado sempre em março eventos de comemoração pela anexação da Crimeia, península ucraniana ocupada pelos russos em 2014.
Na Coreia do Norte, além da recepção a Putin, Kim tem realizado cada vez mais paradas militares, nas quais exibe as novas armas que sua ditadura desenvolve enquanto grande parte da população passa fome.
Em entrevista ao jornal The Korea Times, Hyun In-ae, professora convidada do Departamento de Estudos Norte-Coreanos da Universidade Feminina de Ewha (da Coreia do Sul) que deixou a Coreia do Norte, afirmou que Kim busca com as paradas militares demonstrar união e força e mostrar ao povo que valeria a pena “apertar o cinto” para que o arsenal norte-coreano siga sendo expandido. “É um evento político”, disse Hyun.
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