Ouça este conteúdo
Dias antes de sua posse como presidente reeleito dos EUA, Donald Trump deu declarações que chacoalharam o cenário internacional. Umas delas, em especial, criou até mal-estar diplomático com a Dinamarca: a "compra" da Groenlândia.
Tudo começou com uma publicação do ex-mandatário em sua rede social Truth Social, na época do Natal. Na ocasião, Trump escreveu que a “propriedade e o controle” do território dinamarquês autônomo é “uma necessidade absoluta” para a segurança nacional dos EUA.
O republicano acrescentou que a Groenlândia é “um lugar incrível e que as pessoas se beneficiarão se ela se tornar parte da nação (EUA)” e, em uma mensagem posterior, ele frisou que “este é um acordo que precisava ser feito”.
Desde então, o futuro governante da Casa Branca e o governo da Dinamarca têm se manifestado em pronunciamentos que rondam a "disputa".
A primeira-ministra dinamarquesa, a social-democrata Mette Frederiksen, afirmou após as declarações de Trump: “Meu ponto de partida, e o do governo, é muito claro: o futuro da Groenlândia é definido na Groenlândia”.
Frederiksen acrescentou que, se a Groenlândia tomar uma decisão sobre seu futuro, o governo dinamarquês tomará uma posição, em referência ao direito do território à autodeterminação.
A Dinamarca, Groenlândia e Ilhas Faroe constituem a chamada Comunidade do Reino Dinamarquês, o que implica um compromisso coletivo e a responsabilidade de cuidar de sua parte do Ártico.
Nas redes sociais, o primeiro-ministro da Groenlândia, Múte Bourup Egede, também lançou a seguinte declaração: “Deixe-me repetir: a Groenlândia pertence aos groenlandeses. Nosso futuro e nossa luta pela independência é assunto nosso. Os dinamarqueses, os americanos e os demais podem ter uma opinião, mas não devemos cair na histeria e nos distrair com pressões externas”.
Mais recentemente, na segunda-feira (13), Egede abaixou o tom ao afirmar que estaria "aberto" a buscar uma maior cooperação com os Estados Unidos. “Temos que negociar com os EUA. Iniciamos um diálogo e começamos a explorar as possibilidades de cooperação com Trump”, disse em entrevista coletiva em Nuuk, capital da Groenlândia, de acordo com a televisão pública local KNR.
Egede mencionou o setor de mineração como um "setor óbvio" para a cooperação, considerando o rico subsolo do território. Sobre uma maior colaboração em defesa, disse que havia um “diálogo” em andamento, sem entrar em detalhes - as declarações têm como pano de fundo uma campanha pré-eleitoral, já que a Groenlândia deve realizar eleições regionais antes de maio.
Essa ilha ártica de aproximadamente dois milhões de quilômetros quadrados (80% dos quais cobertos por gelo) e uma população de apenas 56 mil habitantes tem desfrutado de um novo status desde 2009 que reconhece o direito à autodeterminação.
Embora a maioria dos partidos e a população defendam a separação da Dinamarca, metade do orçamento do território depende da ajuda anual de Copenhague, e as tentativas de aumentar a receita vinda de sua riqueza mineral e petrolífera fracassaram até agora devido às dificuldades e ao alto custo de extração.
Posição estratégica e recursos naturais raros influenciam interesse de países pelo território
A Groenlândia tem sido alvo do interesse não apenas dos EUA, mas de outras potências mundiais devido a uma série de benefícios encontrados na região, sendo o principal deles os recursos naturais pouco explorados, como petróleo e minerais estratégicos.
Um artigo do The Conversation aponta que a Groenlândia possui fartos metais preciosos como ouro e platina, além de metais básicos, como ferro, cobre, níquel, cobalto e urânio, e elementos de terras raras, incluindo neodímio, disprósio e praseodímio, que se tornaram essenciais para desenvolver tecnologia de equipamentos, como baterias, mas também há uma atenção maior pelo seu uso militar.
Essa relevância é reforçada pelo fato de que os EUA mantêm uma base militar no norte da Groenlândia, em virtude de um amplo acordo de defesa assinado em 1951 entre Copenhague e Washington.
Um estudo detalhado de 2023, publicado pelo Geologic Survey of Denmark and Greenland (GEUS), localizado na Universidade de Copenhague, sugere que novos recursos devem ser identificados conforme ocorre o derretimento da camada de gelo da Groenlândia.
Essas informações levaram a uma verdadeira corrida exploratória no território. Há 14 anos, os líderes da Groenlândia incentivaram empresas de mineração estrangeiras a investirem na ilha, o que incluía companhias da China e uma australiana, a Energy Transition Minerals (anteriormente Greenland Minerals Ltd).
No entanto, o envolvimento de Pequim nas negociações levantou bandeiras vermelhas do Ocidente, que começou a enxergar o Ártico como uma frente de disputas geopolíticas ainda mais importante.
Em 2021, o parlamento da Groenlândia interveio com a proibição de toda a mineração de urânio no território. No mesmo ano, o governo também proibiu qualquer atividade adicional de petróleo e gás. Previsivelmente, a maioria das empresas de mineração posteriormente se afastou da Groenlândia devido à preocupação percebida de qualquer investimento ser prejudicado por futuras decisões políticas.
A Rússia é outro país que já manifestou interesse na região do Ártico. Diante do "requentamento" da discussão por Trump sobre a Groenlândia, Moscou afirmou na semana passada que também possui interesses nacionais estratégicos no território.
“O Ártico é uma zona de nossos interesses nacionais e estratégicos [...] estamos interessados em preservar a atmosfera de paz e estabilidade na zona do Ártico”, disse o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov.
Objetivo de Trump é estratégico militarmente, explica especialista
O economista Igor Lucena, doutor em Relações Internacionais, explica que Trump sabe que não há um interesse real dos groenlandeses em "vender" o território para os EUA, mas as declarações são usadas estrategicamente para outro fim.
"Diferentemente do que aconteceu com os EUA e o Panamá, que foi um território ligado à criação do canal e que, após um tempo, foi devolvido, a Groenlândia não tem um histórico de relação com Washington. Quando Trump fala de uma maneira tão firme sobre ‘comprar’ a Groenlândia, isso se deve a uma questão estratégica que precisa ser compreendida”, comenta.
De acordo com Lucena, “eles [os groenlandeses] não têm interesse nenhum em se tornar parte dos EUA, e todos sabem disso: os americanos sabem, os dinamarqueses sabem. No entanto, as ameaças de Donald Trump neste momento favorecem radicalmente o sentimento de independência. Políticos da Groenlândia entendem que poderiam receber bilhões de dólares, investimentos em infraestrutura e militares dos EUA", explica o especialista.
"Esse é exatamente o interesse de Trump: ele quer ampliar a capacidade de pesquisa, tecnologia e bases militares na região do Ártico", diz Lucena.
Na análise do economista, caso Trump não consiga "comprar" o território, ele pode oferecer grandes investimentos em pesquisa e acordos internacionais de exploração. "Tudo isso resultaria em uma expansão do poder econômico e militar dos EUA na região do Ártico, visto que a Groenlândia é um dos países mais próximos e faz uma divisa importante para a nova Rota do Norte, que está se abrindo à medida que o gelo derrete”, explica.
Lucena destaca que um acordo com o governo Trump é visto de forma positiva pelos políticos da Groenlândia, como uma oportunidade de obter mais recursos e alcançar sua independência, "tomando as rédeas de sua própria região".
As declarações de Trump surgem em uma ocasião importante para o território que integra o Reino da Dinamarca, que terá eleições parlamentares nos próximos meses.
"Trump não quer comprar a Groenlândia de fato, mas quer estabelecer um novo acordo. E essa política interna talvez tenha como objetivo acelerar o processo de independência, especialmente considerando que as eleições parlamentares na Groenlândia são em abril, e que um novo governo pode tornar as negociações mais fáceis do que um governo da União Europeia, que é muito mais complexo”, afirma.