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O presidente do Peru, Martin Vizcarra, durante posse de seu novo gabinete de ministros, em Lima, 3 de outubro de 2019
O presidente do Peru, Martin Vizcarra, durante posse de seu novo gabinete de ministros, em Lima, 3 de outubro de 2019| Foto: Cris BOURONCLE / AFP

O retorno da América Latina à democracia passou por muitos percalços, principalmente nas mãos de presidentes desonestos que centralizam o poder e atropelam a lei. Mas o que acontece quando os legisladores são os vigaristas?

O Peru pode revelar a resposta para esse enigma. Após meses de confrontos, um presidente persistente e um parlamento de camaradas atingiram um impasse intransponível. Repetidamente frustrado em suas tentativas de fazer reformas políticas e aprovar legislação anti-corrupção, o presidente Martin Vizcarra dissolveu o Congresso na semana passada e pediu novas eleições. O Congresso retaliou votando para dissolver sua presidência e instalou a vice-presidente em seu lugar. O mandato dela durou 36 horas. Agora, uma das nações mais prósperas da América Latina tem uma legislatura no limbo, o seu líder está atrás das portas do palácio vigiado e os peruanos nas ruas comemorando uma revolta sem estágio final.

Estamos em 1992 de novo? Provavelmente não. Naquele ano, o homem forte Alberto Fujimori enviou tanques para fechar o Congresso, silenciou a oposição e intimidou todo mundo. Ele governou por decreto pelos próximos oito anos e agora está preso por abuso de direitos humanos e corrupção. O objetivo não disfarçado de Fujimori: sufocar as instituições democráticas e permanecer no poder. O de Vizcarra, ao que parece, era consertá-las e sair.

"Este não é um homem que está atacando o Congresso para acumular mais poder. Um Congresso obstrucionista se impôs e agora [Vizcarra] está tentando governar sem eles", disse Jorge Valladares, um estudioso do Peru no Instituto Internacional para Democracia e Assistência Eleitoral.

Acadêmicos que estudam constituições e analistas políticos estão divididos, e todo a questão pode ser melhor resolvida no tribunal constitucional. O problema é que o próprio tribunal fazia parte da luta pelo poder.

O gatilho imediato para o confronto foi uma disputa de meses sobre as nomeações para o assento mais alto do país, onde seis dos sete juízes em exercício deverão ser substituídos. Vizcarra fez lobby no Congresso para tornar o processo de seleção mais transparente e aumentar a participação popular. O Congresso o ignorou e seguiu em frente com a votação de novos magistrados, começando - de maneira reveladora - com o primo do presidente do congresso, um forte opositor.

Esse é um truque conhecido: da Bolívia à Venezuela, legisladores têm lutado em vão enquanto líderes desonestos do Executivo lotam os tribunais para dar um verniz de legalidade aos seus excessos. No Peru, é o Congresso quem tenta capturar o tribunal.

"Sabemos que é um sinal de alerta quando um presidente tenta controlar o judiciário", disse Javier Corrales, estudioso da América Latina no Amherst College. "Mas agora temos um caso de um parlamento que se comporta mal. Seria bom se pudéssemos dizer que isso também não é democrático. Não estamos acostumados a pedir que o Congresso seja controlado."

Dois fantasmas pairam sobre o confronto e explicam boa parte da atual disfunção política do Peru. Um deles é o fujimorismo, a marca tóxica do populismo de direita do ex-ditador, agora defendida por sua filha Keiko. O outro fantasma é a Odebrecht, a gigante empresa brasileira de construção civil ligada a propinas e esquemas de compra de votos pela América Latina. Quatro dos antecessores imediatos de Vizcarra foram atingidos nas investigações da Odebrecht. O ex-presidente Alan Garcia cometeu suicídio antes de ir para a prisão.

Foi o escândalo da Odebrecht que levou Vizcarra ao cargo, quando em 2018 o presidente Pedro Pablo Kuczynski foi acusado e renunciou. Sua queda deu energia ao fujimorismo, que nunca havia superado sua estreita derrota para Kuczynski nas eleições dois anos antes.

O caso da Odebrecht também assolou a oposição, envolvendo altos nomes do partido da Força Popular, de maioria fujimorista, começando com Keiko, que aguarda julgamento por corrupção atrás das grades. Seu partido a princípio viu Vizcarra como um substituto mais flexível - talvez até como um cartão de "saída livre da prisão" para Keiko e seu pai doente. (Kuczynski havia perdoado Alberto Fujimori em uma jogada para apaziguar os oponentes e sobreviver a uma campanha de impeachment, mas a Suprema Corte do Peru o enviou de volta à prisão.) Vizcarra tinha outras ideias. Um governador de província que não pertencia a nenhum dos partidos tradicionais do Peru, ele aproveitou o momento popular para lançar reformas abrangentes visando o pouco querido establishment político.

Demorou um pouco, mas Vizcarra encontrou sua agenda: crimes de colarinho branco e corrupção política. "Em algum momento, ele decidiu que seu governo só sobreviveria se confrontasse o Congresso", afirmou Valladares.

No momento, Vizcarra está em vantagem. As eleições para o Congresso estão marcadas para 26 de janeiro. Uma comissão permanente foi autorizada a intervir no Congresso, e Vizcarra substituiu a maior parte de seu gabinete. O Sol peruano chegou a ter uma leve alta em meio à turbulência, e os títulos do país permanecem entre as apostas mais seguras dos mercados emergentes.

O Peru está longe de estar apaziguado, no entanto. Graças à agitação dos cidadãos, o novo Congresso a tomar posse no próximo ano terá caras novas, mas pouco comando. Eles atuarão apenas até a próxima eleição geral, programada para 2021, o que lhes deixa com pouco tempo para reformas, e menos ainda para resgatar a instituição pública menos querida do país: uma pesquisa na semana passada revelou que 89,5% dos peruanos concordaram que o Congresso deveria ser dissolvido.

Mas aqui está o paradoxo: ao fazer o papel do outsider justiceiro, Vizcarra conquistou um país cansado da política habitual. No entanto, para evitar a próxima crise e ordenar uma reforma, Vizcarra pode ter que tapar o nariz e se juntar à lama.

"Vizcarra tem uma agenda e a opinião pública ao seu lado", disse Valladares. "Para colocar essa agenda em funcionamento, ele precisa de um partido ou movimento social, e até agora ele não parece interessado".

Uma piada que tem circulado recentemente em Lima diz que, mais do que um líder justo, o Peru precisa do capitão Pantoja, o soldado herói do romance cômico "Pantaleão e as Visitadoras", de Mario Vargas Llosa, encarregado de administrar um bordel para reavivar o moral das tropas. Infelizmente, Pantoja não está nas cédulas. No entanto, as esperanças são de que o homem que interpretou o personagem no cinema, Salvador del Solar - que deixou de atuar para se tornar político, se tornou o primeiro-ministro de Vizcarra e na semana passada frustrou o Congresso para criar o voto de não-confiança - esteja pronto para um papel maior.

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