Servindo no Exército Brasileiro desde 2005, a major Gabriela Rocha Bernardes se tornou em 2022 a primeira e única brasileira a participar da Missão Integrada das Nações Unidas de Assistência à Transição no Sudão (Unitams, na sigla em inglês). Essa missão política especial, criada em 2020, tem como objetivo central criar meios para apoiar a transição do país africano para o regime democrático.
Há 18 anos fazendo parte do quadro complementar de oficiais do Exército Brasileiro no Comando Militar do Leste, Bernardes relatou, em entrevista à Gazeta do Povo, que já esteve em outra missão de paz, no Haiti, por duas vezes. Lá, passou no total 15 dias. A missão no Sudão foi a primeira para qual foi efetivamente selecionada.
“Fiquei muito feliz quando me nomearam. Porque desde a faculdade eu sempre quis atuar em alguma missão da ONU ou alguma missão de cunho humanitário para conhecer outras realidades, para representar o Brasil, levar um pouco da nossa cultura, absorver um pouquinho da cultura de outros países. Eu acho que isso é sempre uma coisa muito enriquecedora”, afirmou.
A oficial apontou que já imaginava encontrar um cenário complicado ao chegar ao país africano, marcado por conflitos nos últimos anos.
“Com a queda do ditador [Omar Al-Bashir] em 2019, que governou o Sudão por cerca de 30 anos, entrou um governo de transição, que passou a liderar o país. Até que, em 2021, os militares deram um golpe nesse governo. Então, a gente sabia que já tinha um ambiente instável. A missão foi instalada logo em seguida à queda do ditador, em 2020. Então, o objetivo principal da missão era apoiar essa transição política do Sudão para um regime democrático”, disse.
A missão de paz foi enviada para o país africano na expectativa de que os acordos de transição democrática pudessem ser implementados e o governo militar passasse então a liderança do país para as mãos de civis. A ideia era que, logo em seguida, pudessem ser realizadas eleições no Sudão, mas o acordo foi impedido pela eclosão do conflito entre as Forças Armadas Sudanesas (SAF, sigla em inglês) e as Forças de Suporte Rápido (RSF, sigla em inglês) em abril deste ano.
“A gente foi com essa expectativa, mas, infelizmente, nos momentos finais de assinatura desse acordo para a passagem do governo para os civis, ocorreu essa reviravolta”, lamentou a oficial brasileira.
Sendo a única brasileira a atuar nessa missão da ONU, Bernardes sentiu as dificuldades desse ineditismo. “Ser a única brasileira no terreno nunca é fácil. Ainda mais numa missão nova, como a Unitams. Ela tem apenas três anos e é uma missão pequena, com cerca de 230 integrantes. Então, a gente acaba descobrindo muita coisa sozinha. Não tem aquela troca de experiências que acontece em missões da ONU, quando um brasileiro sai e outro entra. Na prática, eu tive que aprender muita coisa por conta própria”, contou.
Para a major, no entanto, a recepção dos sudaneses atenuou esses problemas. “É interessante e curioso ver nas pessoas o espanto e ao mesmo tempo a alegria de saberem que tem um brasileiro lá, trabalhando tão longe [do seu país]. E é sempre impressionante ver como o nosso país é bem visto. Eu falo que eu sou brasileira e todo mundo sorri. Então, tem esses dois lados. Não é fácil, mas é sempre gratificante”, declarou Bernardes.
Por ser uma missão política especial criada para apoiar uma transição democrática no Sudão, a Unitams dispõe de uma equipe pequena em relação a outras missões internacionais. De acordo com Bernardes, o comitê onde ela trabalhava era diretamente responsável pelas mediações e pela busca da resolução de conflitos locais.
“A vaga destinada ao Brasil, que é a que eu ocupo, é uma vaga para oficial de relatórios do Comitê Permanente de Cessar-Fogo, que tem entre as suas atribuições o dever de fazer o monitoramento do cessar-fogo, especialmente na região de Darfur, que fica a oeste do Sudão. Eu morava na cidade de El-Fasher, ao norte de Darfur”, explicou a oficial.
Bernardes explicou que também atuava na investigação de possíveis violações do cessar-fogo entre as forças paramilitares do país e o exército e atuava no apoio à facilitação do acesso de outras agências humanitárias ao Sudão.
“Tudo isso estava previsto no acordo de paz de Juba, que rege o mandato do Comitê de Cessar-Fogo e que foi assinado entre o governo do Sudão e cinco grupos armados, incluindo o RSF, que é o principal grupo paramilitar [do país] e está em confronto direto com as forças armadas do governo nesse momento”, detalhou.
Bernardes afirmou que todos os acordos assinados no país tiveram a ONU como a terceira parte mediadora. "A missão foi instalada em 2020, o comitê em 2021 e eu cheguei lá em 2022. Então, eu trabalho tanto na produção de relatórios como na relatoria dessas reuniões e encontros [para preparar os acordos]. Eu também atuava na parte de receber delegações para acompanhar essas implementações dos protocolos de segurança”, disse.
A oficial lembrou que durante a missão acumulou outras funções, como a de responsável pelas informações públicas. Nessa função, atuava na divulgação do trabalho do Comitê para a Sociedade Civil. Além disso, Bernardes afirmou que, “como mulher, eu acabei ministrando muitas instruções, muitas palestras sobre equilíbrio de gênero, na tentativa de falar sobre a necessidade e a importância de se aumentar o efetivo de mulheres em grupos representativos, de maneira a ter essa representação feminina, já que as mulheres fazem parte dos conflitos armados também e precisam fazer parte da solução”.
Início do conflito
Era manhã do dia 15 de abril, um sábado. Bernardes relatou que estava finalizando a entrega de seus relatórios diários quando ela e sua equipe foram avisadas pelo setor de segurança da ONU para que evitassem sair de casa porque “haveria ali um confronto maior do que o normal”.
“Foram muitas horas de tiros, de explosões, bombas, enfim. Um confronto muito forte já nesse primeiro dia e muito perto das nossas casas, onde o pessoal da missão costuma morar, que também é perto do nosso escritório. E isso se sucedeu pelo menos pelos próximos três dias, de forma muito intensa, e depois foi alternando entre alguns momentos de mais tranquilidade, mas sempre seguindo nessa frequência, nessa intensidade. Eu acho que, na verdade, ninguém imaginava que fosse ser tão forte como foi”, lembrou a major.
Com a necessidade de sair do país por questões de segurança, toda a equipe da missão precisou ser evacuada. Os integrantes da ONU em Cartum, capital do Sudão, foram evacuados por terra para Porto Sudão. Já os integrantes da sede do Comitê Permanente de Cessar-Fogo, que fica na região de Darfur, tiveram que ser evacuados de duas formas diferentes: por terra e por ar.
A major explicou que o comitê estava dividido em diferentes setores espalhados pela região: o setor que ficava no norte de Darfur, onde ela estava, e os do sul, do leste e do oeste central de Darfur.
Todos os setores, menos o do norte, foram evacuados por terra. O setor do norte, onde a oficial trabalhava, foi o último a sair devido a dificuldades logísticas. “Ficamos bem no meio do deserto, por isso, nós precisamos ser evacuados por aeronave”, lembrou. “Uma evacuação aérea requer uma operacionalização mais complexa, para manter o máximo de segurança possível. E aí nós fomos evacuados para o Chade [outro país africano], que faz fronteira ali conosco. Do Chade, nós fomos levados para Uganda, e ficamos na cidade de Entebbe, onde existe uma base logística da ONU, que nos recebia no horário de trabalho”, explicou.
A major recordou que algumas pessoas ficaram em Entebbe, outras foram para Nairóbi, capital do Quênia, e muitas retornaram para os seus países, onde estão até o momento.
Trabalho remoto
Todos os que estavam na missão iniciaram o trabalho novamente de forma remota. “A gente monitora à distância mesmo, produz os relatórios com as informações que a gente consegue, seja com os nossos colegas locais, que são sudaneses que moram no Sudão, seja com vizinhos, com amigos que nós fizemos nesse período. Eu fechei praticamente quase um ano de missão, então nós conversamos com esse pessoal e mesmo com as dificuldades de internet, seguimos buscando essas informações para produzir os relatórios e tentar assim assessorar a chefia da missão da melhor forma possível”, afirmou.
O cenário de conflito no Sudão segue bastante instável. Bernardes explicou que quem está no país ainda “se sente muito inseguro” e que não “há nenhuma previsão daquilo que possa acontecer de um dia para o outro”. A oficial explicou que a maior dificuldade no dia a dia é a comunicação, devido à má qualidade da internet local. “Já era difícil falar com a família e com os amigos numa situação normal, você pode imaginar que agora está ainda pior”, apontou.
“A diferença da gente não estar no terreno é justamente não ter as informações com maior confiabilidade. Infelizmente, é isso que acontece, mas a gente vai buscando, falando com um e com o outro. Enfim, procurando o máximo de fontes para poder alimentar a chefia da missão.”
Renovação da missão
Neste momento, Bernardes vive a expectativa da renovação da missão no Sudão. A votação para decidir se a Unitams vai continuar ou não será realizada neste sábado (3) pelo Conselho de Segurança da ONU.
“A missão foi aprovada pela primeira vez em 3 de junho de 2020. Desde então, ela vem sendo renovada anualmente. A gente tem uma expectativa positiva quanto à renovação da missão para mais um ano. Estamos esperando que ela seja mantida”, ponderou.
“Por enquanto, os integrantes vão ter que trabalhar remotamente, porque o próprio Sudão tem dificultado a entrada no país. Não é só a questão da saída, de você ter refugiados, você ter pessoal deslocado lá dentro. É também entrar, eles dificultam. Você precisa de visto, você precisa de autoridades para poder passar nos pontos de entrada do país. E isso, você pode imaginar que está um caos. Qualquer tentativa de entrada no país está extremamente dificultada”, pontuou.
Bernardes afirmou que, caso a missão continue, terá que se adaptar. “A gente não tem detalhes ainda de como isso vai ser feito. Mas ela vai ter que se adaptar para poder, de alguma maneira, continuar apoiando o Sudão”, explicou.
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