Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Oriente Médio

Plano de Trump para Gaza e vácuo de poder palestino deixam solução de dois Estados ainda mais distante

Palestinos viajam do sul da Faixa de Gaza em direção ao norte após a retirada das tropas israelenses do Corredor Netzarim, no centro do enclave (Foto: EFE/EPA/MOHAMMED SABER)

Ouça este conteúdo

Na semana passada, durante uma visita do premiê israelense, Benjamin Netanyahu, a Washington, o presidente americano, Donald Trump, surpreendeu o mundo ao fazer uma proposta para administração da Faixa de Gaza ao fim da atual guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas no enclave palestino.

O republicano sugeriu que os Estados Unidos assumam o controle do território, limpem o local de edificações destruídas e bombas não detonadas e o transformem num empreendimento que seria uma “Riviera do Oriente Médio”, com o deslocamento da população palestina para países árabes vizinhos.

A proposta foi imediatamente rechaçada por aliados americanos na Otan e por países árabes vizinhos de Israel. O Egito e a Jordânia, que fazem fronteira com os territórios palestinos, resistem a acolher palestinos porque, entre outras razões, acreditam que a saída dessa população enterraria qualquer chance de implementar a solução de dois Estados, aprovada na ONU há quase 80 anos.

Netanyahu sempre se opôs à criação de um Estado palestino, dependendo do momento, com mais ou menos intensidade. Entretanto, sua aversão à ideia foi realçada desde sua mais recente chegada ao poder, no final de 2022, apoiado por partidos de direita nacionalista que se opõem totalmente à solução de dois Estados.

A guerra na Faixa de Gaza, iniciada com os atentados do Hamas em outubro de 2023, reforçou essa posição. No ano passado, o Parlamento de Israel (Knesset) aprovou uma resolução contra o estabelecimento de um Estado palestino, proposta pela coalizão de Netanyahu, mas também apoiada pela oposição.

Mas não é apenas a ideia de Trump e a resistência de Netanyahu que colocam em xeque a solução de dois Estados. Os palestinos vivem um vácuo de poder, com sua representação política rachada em dois blocos sem legitimidade.

O Fatah, do presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, que controla parte da Cisjordânia, está oficialmente rompido com o Hamas desde 2007, ano seguinte à vitória do grupo terrorista nas eleições em Gaza, quando o Hamas expulsou o Fatah do enclave.

No ano passado, o então presidente americano, Joe Biden, chegou a defender que a Autoridade Palestina assuma o poder em Gaza após o fim da guerra com Israel, mas também indicou a necessidade de reformar o corpo político, minado por corrupção, falta de renovação (Abbas tem 89 anos) e pela expansão dos assentamentos judaicos na Cisjordânia – uma das primeiras medidas do segundo mandato de Trump foi retirar as sanções contra colonos israelenses na região.

No ano passado, Netanyahu se opôs à ideia de que a Autoridade Palestina administre Gaza. “Quando destruirmos o Hamas, a última coisa que devemos fazer é colocar no comando de Gaza a Autoridade Palestina, que educa suas crianças para o terrorismo e financia o terrorismo”, afirmou.

Em entrevista à Gazeta do Povo, Victor Missiato, historiador do Instituto Presbiteriano Mackenzie, concordou que a solução de dois Estados se tornou uma possibilidade muito distante e destacou que a única possibilidade de que ainda se concretize é que o Hamas seja apagado do mapa político do Oriente Médio. Confira a entrevista.

Na sua opinião, a proposta de Trump de assumir o controle de Gaza e retirar os palestinos do enclave pode realmente sair do papel? Ou, como em outros episódios da sua política externa, pode ser apenas uma ameaça para negociar depois em termos mais favoráveis?

Nós temos que levar em consideração que nós estamos falando de 2 milhões de palestinos em Gaza e que muitos dos países ao redor têm uma grande dificuldade em aceitar mais refugiados palestinos, tendo em vista também o grande número de refugiados libaneses e principalmente sírios em outros países da região e na Europa. Então, isso desencadearia uma explosão de migrações não só atingindo o Oriente Médio, mas o norte da África e também a Europa.

Vejo como muito improvável uma retirada, entre aspas, forçada por parte dos Estados Unidos. No entanto, é possível que financiando a estruturação de um campo, de um espaço para onde parte desses palestinos se encaminhe para viver, no Egito, na Jordânia ou até mesmo em Israel, é possível que haja uma diminuição de palestinos na região de Gaza e aí, sim, se inicie um processo mais a médio e longo prazo de transformação daquela região, que hoje é uma das piores regiões do mundo para se viver devido às más condições que estão ali colocadas.

Essa proposta e a oposição de Netanyahu e seus aliados à solução de dois Estados enterram de vez essa solução? Ou ela ainda pode ser implementada?

A solução para a criação e a consolidação de dois Estados, conforme aquilo que estava colocado na ONU em 1947, 1948, está se tornando cada vez mais improvável por conta de alguns fatores. O primeiro é que a presença do Hamas na Faixa de Gaza impede que aquela região consiga politicamente estabelecer um consenso na ONU para legitimar o seu território.

Segundo, os avanços dos assentamentos de Israel na Cisjordânia também vão enfraquecendo a Autoridade Palestina naquela região no que diz respeito à defesa de sua soberania. Tudo isso faz com que se torne cada vez mais difícil a solução pelos dois Estados.

É necessário que tanto Israel quanto Palestina abram mão de alguns pressupostos. No caso de Israel, o avanço dos assentamentos; no caso da Palestina, [é necessária] a destituição total do Hamas como organização político-militar. E, aí sim, uma nova rodada de diplomacia [precisaria] acontecer para que os palestinos e também os israelenses possam viver em paz.

A posição unânime é que, independentemente do que acontecer, Israel e os EUA não admitirão que o Hamas volte a administrar Gaza. E na Cisjordânia, os assentamentos israelenses se espalham, minando o controle da Autoridade Palestina. Os palestinos vivem um vácuo de poder? O que gerou esse vácuo? Algum representante palestino pode ser uma escolha com apoio suficiente para governar os territórios?

Os palestinos, depois que elegeram o Hamas no início do século XXI, optaram por perder cada vez mais legitimidade junto a parte da comunidade internacional, porque o Hamas defende a destruição do Estado de Israel. Então, não há diplomacia possível, de conviver com essa organização terrorista.

Isso dificultou muito a vida dos palestinos, e foi uma decisão dos palestinos. Muita gente gosta de separar o Hamas da Palestina, mas o Hamas foi eleito pelos palestinos. E a plataforma do Hamas é muito clara há muito tempo.

No caso da Cisjordânia, isso enfraqueceu a Autoridade Palestina, que perdeu a legitimidade sobre as duas regiões. Então, a meu ver, a possibilidade de a Palestina restabelecer uma soberania diplomática junto a toda a comunidade internacional passa pela destituição total do Hamas. Se isso acontecer, mostraria para o mundo uma iniciativa muito grande em relação à paz.

E eu vejo que só essa ação já mudaria radicalmente a pressão para o lado de Israel, forçando a negociar com uma Autoridade Palestina reformada, que é o que Israel defende, que os Estados Unidos também defendem, que a Autoridade Palestina passe por uma reforma importante e escolha um líder capaz de respeitar a soberania dos dois países. Há muito tempo os palestinos optaram por líderes que jamais aceitaram a solução dos dois Estados. Chegou a hora de partir para essa prerrogativa. Isso passa pela destituição total do Hamas.

Países europeus, alguns dos quais reconheceram o Estado palestino após o início da guerra em Gaza (como Espanha, Irlanda e Noruega), são contrários ao plano de Trump. Mas poderão fazer algo além de se manifestar contra?

Eu não vejo força suficiente de qualquer país europeu e da Otan para frear os anseios de Trump e Netanyahu, embora Netanyahu não sei se fica mais muito tempo no poder [o premiê responde na Justiça israelense a acusações de corrupção, e novas eleições no país estão previstas para 2026], mas não vejo esses países capazes de exercer uma pressão suficiente para mudar os planos que estão ocorrendo.

Para finalizar, eu vejo que, sim, existe uma pressão de Trump para que acelere alguma mudança mais radical nas negociações, não necessariamente com a expulsão dos palestinos, mas principalmente com a destituição do Hamas. Eu vejo que esse é o principal objetivo do Donald Trump. E, acertadamente, se você pensar que somente sem o Hamas é possível negociar uma paz entre Israel e Palestina.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.