Na mesa de negociações diplomáticas para mediar o conflito no Sudão, uma informação não pode faltar: a previsão do clima. O ciclo da água do rio Nilo e seus afluentes dita o passado e o futuro do país na região do Sahel africano, bem como sua relação com as nações vizinhas. É um exemplo de como a geopolítica está e estará cada vez mais entrelaçada com as mudanças climáticas, especialmente em um dos berços da civilização.
Se nos últimos três anos o Sudão foi assolado pelas maiores enchentes do século e chuvas que afetaram mais de 800 mil pessoas em 17 dos 18 estados do país, para os próximos meses, a previsão aponta para um cenário no outro extremo: seca e altas temperaturas, uma combinação que deve adicionar ainda mais pólvora às armas do Exército sudanês e das Forças de Apoio Rápido, as duas facções militares que mergulharam o país em um novo conflito militar no último dia 15.
“Uma temporada de seca e fortes ondas de calor terá impactos negativos significativos no sistema de irrigação agrícola e, portanto, na segurança alimentar, além do potencial de provocar incêndios florestais e mortes”, explicou Dave MacLeod, professor de risco climático da Universidade de Cardiff, em entrevista à Gazeta do Povo.
O especialista, que passou os últimos anos estudando formas de prevenir inundações repentinas em comunidades que margeiam o rio Nilo no Sudão, explicou que atualmente existe uma chance de 73% de formar-se no planeta o fenômeno climático El Niño, entre maio e junho. Para o Sudão, isso significa escassez de água e muito calor, eventos que tendem a ser agravados pelo aumento geral de temperaturas no planeta.
“Há um grande conjunto de evidências e artigos que relacionam altas temperaturas com a escalada de violência e agressão em vários países. Se um forte El Niño se desenvolver e confirmar uma estação quente e seca, isso pode contribuir plausivelmente para a exacerbação da intensidade do conflito no Sudão”, complementou o professor.
Entretanto, o sumiço ou excesso de água no Nilo está longe de ser uma questão exclusivamente do Sudão. Também estão de olho no céu e nas armas os mandatários dos vizinhos Egito e Etiópia. Esses dois países arrastam há décadas uma disputa internacional pelo direito de uso e gestão hídrica do rio e agora enxergam no tabuleiro sudanês uma chance de conquistar ou perder aliados em suas demandas regionais, especialmente envolvendo a construção da Grande Barragem do Renascimento da Etiópia (GERD), uma obra faraônica que mudará a dinâmica do rio.
Tensão regional
Para entender a disputa, é preciso seguir o curso do rio Nilo até suas nascentes. A porção mais baixa é também a mais famosa: banha o Egito e deságua no Mar Mediterrâneo. Mas antes de formar o famoso rio, as águas dos seus dois principais afluentes precisam se unir: o Nilo Branco e o Nilo Azul, encontro que ocorre justamente na capital sudanesa atualmente em chamas, Cartum. Antes disso, o Nilo Branco percorre 3,7 mil quilômetros desde Uganda. Já o Nilo Azul parte das terras altas da Etiópia, um trajeto de 1,3 mil quilômetros até o encontro.
Desde os anos 1950, a Etiópia especula erguer uma barragem no rio Nilo Azul, um megaprojeto de US$ 4 bilhões retomado em 2011 e que já está 90% concluído. Segundo previsões do governo etíope, a barragem poderá gerar energia elétrica para 60% da população que ainda não está conectada à rede.
No entanto, um desvio no rio em uma região extremamente conectada a ele e suscetível aos fenômenos climáticos atuais chamou imediatamente a atenção de quem está no final desta linha. Os egípcios temem perder o controle sobre o fluxo de água e sofrer com as secas extremas. Por isso, levaram a questão para o Conselho de Segurança da ONU, uma discussão que já foi paralisada diversas vezes na última década e ameaça detonar uma guerra a cada avanço na infraestrutura da barragem.
Espremido geograficamente entre os dois rivais, está o Sudão. “Certamente, o atual conflito no Sudão pode agravar qualquer solução coletiva em relação à disputa pelas águas do Nilo e a barragem GERD na Etiópia. Para chegar a um acordo de regulamentação sobre recursos hídricos compartilhados, os governos precisam ser eficazes. Enquanto durar o conflito, este não será o caso”, explicou Tobias Zumbrägel, pesquisador da Universidade de Heidelberg focado no impacto das mudanças climáticas no Oriente Médio. “É possível que países como Egito e Etiópia estejam tentando apoiar diferentes facções no Sudão, das quais esperam ajuda para conquistar seu interesse político.”
Apoio externo
Após semanas de tensão sobre a reforma das forças de segurança e a negociação de um novo governo de transição, os dois principais líderes políticos do Sudão partiram para o combate: o general Mohammed Hamdan Daglo, conhecido como “Hemetti”, comandante dos paramilitares das Forças de Apoio Rápido, e o general Abdel Fattah al-Burhan, líder do exército nacional e responsável por manter as relações de longa data entre os militares egípcios e sudaneses.
Nos últimos três anos, os egípcios conduziram exercícios militares conjuntos em solo sudanês como demonstrações de "força árabe” em relação aos progressos na construção da barragem etíope. Por isso, quando o conflito doméstico eclodiu, 27 membros da força aérea egípcia que estavam em treinamento no Sudão foram feitos reféns imediatamente pelos paramilitares de “Hemetti”, levando o governo egípcio a dar um "ultimato" às Forças de Apoio Rápido exigindo a liberação de seus militares.
Já os Emirados Árabes Unidos gastaram bilhões de dólares nos últimos anos comprando terras agrícolas irrigadas pela seção sudanesa do Nilo como uma forma de prover alimentos para sua própria população que vive no deserto. O país possui uma relação de longa data com o general “Hemetti”, conectada à extração de ouro, o que garante apoio aos paramilitares no conflito interno sudanês.
Desde então, pelo menos 528 pessoas morreram e 4.599 ficaram feridas, conforme os dados mais recentes divulgados pelas autoridades sudanesas. Segundo as Nações Unidas, os números podem ser ainda maiores devido à dificuldade em coletar informações em campo.
"Já não estamos falando apenas de um problema de água, que é um grande problema em si, mas também estamos falando sobre uma região inteira que está realmente sob ameaça de se tornar ainda mais desestabilizada", opina Zumbrägel.
Extremos perigosos
Mesmo antes dos recentes combates, quase 16 milhões de pessoas no Sudão, sendo 4 milhões de refugiados e deslocados internos, já dependiam de ajuda no país. Isso significa que um em cada três sudaneses precisa de ajuda humanitária. A água e o Nilo são personagens principais novamente nesta crise.
Em 2020, após chuvas extremas causadas pelo efeito climático inverso, o La Niña, os rios Nilo Branco e Azul transbordaram, causando uma devastação sem precedentes no país. O estado do Nilo Branco abriga a segunda maior população de refugiados no Sudão, com mais de 280 mil indivíduos, dos quais 84% são mulheres e crianças. Centenas de milhares de pessoas perderam casas, colheitas e abrigos de refugiados foram tomados pela água, impedindo o acesso e ajuda humanitária. De lá para cá, a prevalência do La Niña continuou causando destruição, sendo a última delas chuvas torrenciais em novembro de 2022, que também afetaram as comunidades ribeirinhas.
A refugiada sul-sudanesa Nyalan Goldit, de 37 anos, é uma delas. Ela fugiu da guerra no Sudão do Sul em 2014, caminhando por sete dias, grávida de nove meses. Ao chegar no campo de refugiados no estado do Nilo Branco, no país vizinho, encontrou um lar seguro. Isso até as enchentes destruírem tudo o que construiu nos últimos anos. "Meu sonho agora é ter um abrigo", ela contou em uma reportagem publicada pela Agência da ONU para Refugiados (Acnur) sobre o assunto.
À Gazeta do Povo, a agência humanitária informou que o conflito detonado este mês suspendeu muitos dos planos de desenvolvimento de infraestruturas humanitárias para mitigar os efeitos das chuvas e secas extremas, como a construção de diques e pontes, além de um plano de estabelecer um novo assentamento para a população afetada pelas enchentes dos últimos anos em áreas não propensas a inundações. "Agora nós só estamos concentrados em fornecer serviços básicos, como saúde, alimentação, água e saneamento", explicou a Acnur. A organização também informou que a violência em Cartum dos últimos dias levou 33 mil novas pessoas a procurar abrigo nos campos de refugiados no Nilo Branco, já afetados pela água.
Em uma perspectiva regional, a ONU estima que toda a população que depende do rio Nilo dobrará até 2050, aumentando significativamente a pressão sobre o fluxo de água e aumentando a proporção de pessoas que já sofrem com a escassez do recurso de 10% para 35% neste mesmo período, tornando a gestão e controle hídrico do Nilo uma questão de segurança regional. Ao mesmo tempo, essa balança que pende rapidamente para dois perigosos extremos em relação ao fluxo da água colocará em risco climático metade da população nos próximos 15 anos, o que significa que inundações e secas aumentarão em ocorrência e gravidade, gerando ainda mais tensão geopolítica.
“Uma barragem pode amortecer o efeito de uma grande entrada de chuva e espalhar a descarga de água, reduzindo o risco de inundações e proporcionando um abastecimento mais sustentável da água do rio para a agricultura. Por outro lado, se a água for liberada muito rapidamente, isso pode enviar uma onda de inundação rio abaixo, aumentando o risco de enchentes. Se a chuva for escassa e barragem reter o fluxo, prejudicaria a população a jusante que depende do rio. No fim, o impacto de uma infraestrutura desta dependerá da sua gestão e de até que ponto os interesses da população a jusante serão considerados”, resume Dave MacLeod.
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