Com uma inflação de 476% em 2016 — e previsão de chegar a 1.600% este ano, segundo o FMI — os venezuelanos perdem poder de compra ano após ano. Pesquisa da consultoria Kantar Worldpanel, especialista em comportamento de consumo, mostra que o consumo dos venezuelanos caiu 55% nos últimos cinco anos. Na prática, a população compra metade do que comprava cinco anos atrás.
“O consumo caiu porque a renda foi corroída brutalmente pela inflação e por causa da escassez de produtos nas prateleiras”, diz Vinicius da Silva, diretor-geral da Kantar em Venezuela, Colômbia e Equador, responsável pelo levantamento.
Em 2016, a pesquisa da Kantar, feita em 2.300 domicílios, mostrou que o consumo de alimentos encolheu 27,1% em relação ao ano anterior. O de lácteos caiu 24,5% e o de bebidas recuou 13,8%. O segmento de cuidados pessoais encolheu 13,6%.
“Por ano, os venezuelanos iam 280 vezes aos pontos de venda. Agora, vão 180 vezes”, diz Silva.
Sem uma indústria local forte e com importações em queda, a população busca soluções alternativas para abastecer a despensa, diz o diretor da Kantar. Muita gente começou a fabricar produtos de limpeza em casa. Quando consegue encontrar algum produto, como açúcar, compra quantidade maior para trocar por outros com os vizinhos. Sem encontrar fraldas industrializadas, as mães voltaram a comprar as de pano.
“É uma mudança de hábitos catastrófica para um povo que sempre foi considerado um consumidor voraz”, diz Silva.
Os ambulantes (bachaqueros) se multiplicam e revendem produtos da cesta básica por até dez vezes mais do que nos canais oficiais. Hoje, 80% das famílias compram por este canal, diz a Kantar.
Exportadores brasileiros têm US$ 6 bilhões para receber da Venezuela
Em muitos casos, empresas do Brasil chegaram a levar calote
- São Paulo
A decisão do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, de decretar “estado de emergência na economia” deixou um rastro de problemas para os exportadores brasileiros, que enfrentam dificuldade para receber por suas vendas e, em muitos casos, levaram calote. Um levantamento do coordenador do MBA de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas, Oliver Stuenkel, aponta que as empresas brasileiras tinham ao menos US$ 6 bilhões a receber em contratos já fechados para os próximos anos antes da entrada em vigor do estado de emergência, em janeiro do ano passado (e que já foi renovado). Os efeitos já são visíveis no fluxo comercial, que recuou ao menor nível desde 2003: passou de pouco mais de US$ 6 bilhões, no auge, em 2012, para US$ 1,69 bilhão no ano passado.
Como os contratos de câmbio são fechados diretamente entre empresas exportadoras e bancos e registrados no chamado Sistema Câmbio do Banco Central, não se sabe exatamente o tamanho da fatura herdada na crise. Mas especialistas e empresas afirmam que a maior parte dos contratos não foi paga. Para quem ainda exporta para o país, a solução tem sido exigir pagamento antecipado.
“Com o estado de emergência e o colapso da economia venezuelana, os importadores de lá não têm como pagar as empresas brasileiras. Houve uma tentativa de quitar alguns pagamentos, mas a maior parte da dívida não foi paga. O resultado é que muitas companhias simplesmente deixaram de vender para o país vizinho por medo de não receber”, explica Stuenkel, que acompanhava as movimentações comerciais entre os países até o estado de emergência.
O presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro, destaca que a escassez de dólares e a diferença de taxas de câmbio oficial tornaram tudo mais complicado: “Basicamente, as empresas têm exportado alimentos, nesse novo contexto de crise, e recebido antecipado ou à vista”.
Tradicional mercado para carnes brasileiras, as vendas para a Venezuela despencaram em 2016. A exportação de bovinos caiu 75,7%, a de frangos, 58% (de 132 mil toneladas em 2015 para 56 mil toneladas em 2016). A de suínos encolheu 14%, de US$ 48 milhões para R$ 41,4 milhões.
O presidente executivo da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), Francisco Turra, afirma que as empresas do setor tiveram muita dificuldade para receber, principalmente do Ministério para a Alimentação da Venezuela.
“Ultimamente as empresas do setor só estão vendendo a prazo com garantias ou com pagamento a vista”, diz Turra.
Procurado, o Ministério da Alimentação da Venezuela não respondeu.
Queda do preço do petróleo
A BRF, dona das marcas Sadia e Perdigão e uma das maiores exportadoras de carne processada, vem reduzindo suas exportações para a Venezuela e para a região e direcionando produtos para o Oriente Médio. A Globoaves, localizada em Cascavel, no Paraná, vendia milhões de ovos férteis (já incubados) para empresas de frango da Venezuela. Mas, ultimamente, os importadores não tinham mais acesso a dólares pelo câmbio oficial para pagar as vendas.
“E só restava ir ao câmbio paralelo, pagando vinte vezes mais pelos dólares. Quem arca com a diferença? Não vamos embarcar mais ovos”, diz Roberto Kaefer, presidente da empresa.
O consultor Welber Barral, ex-secretário de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, afirma que, entre seus clientes, exportadores de alimentos e produtos de linha branca (como geladeiras) deixaram de vender para a Venezuela por causa do risco de crédito: “Os que continuam operando no país vizinho só fazem com pagamento adiantado ou carta de crédito de um banco estrangeiro, o que encarece a operação. Além disso, com vários tipos de câmbio, havia o risco de prejuízo na conversão”.
A economia venezuelana encolheu mais de 10% no ano passado, o quarto ano consecutivo de recessão. Reflexo do agravamento da crise, as exportações brasileiras para lá despencaram 57%, para US$ 1,2 bilhão, em 2016, segundo dados do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços. A Venezuela, que já foi o quinto principal destino dos produtos made in Brazil, em 2009, agora ocupa a 38ª posição.
Segundo os especialistas, as vendas para os venezuelanos podem encolher ainda mais este ano. A previsão do Fundo Monetário Internacional (FMI) é que a economia encolha mais 4,5%, até dezembro, o quinto ano consecutivo de recessão.
Dependente da venda de petróleo, o país sofreu um duro golpe com a queda do preço do barril no mercado internacional, de US$ 120, em 2009, para US$ 40 no ano passado. Com essa baixa, as reservas internacionais desabaram, dificultando o acesso dos importadores à moeda americana.
As companhias aéreas brasileiras mantêm suspensos seus voos para o país desde 2016 porque há dificuldade de receber. Em nota, a Gol informou que só vai retomar a rota para Caracas quando a questão da remessa dos recursos no país for resolvida. A Latam informou que “devido ao complexo cenário macroeconômico atual que enfrenta a região, as operações serão retomadas assim que as condições globais permitirem”. A empresa informou que o valor retido na Venezuela é de US$ 175 mil, segundo dados do último balanço.
Em 2006, a Venezuela chegou a ser o principal destino das exportações de celulares brasileiros. Mas a instalação de uma fábrica chinesa no país e o agravamento da crise, com o controle cambial, foram se transformando numa barreira.
“As empresas brasileiras do setor entenderam que a máxima do comércio internacional deveria ser aplicada: é melhor não exportar, que exportar e não receber”, afirma Humberto Barbato, presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee).
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