Uma fotografia não tem poder algum. Uma obra de arte também não tem poder algum. Lamento se isso desanima os espíritos militantes e engajados que procuram, através das obras de arte, conduzir os espectadores a uma ação política ou comercial. Uma obra de arte não é uma propaganda. Não faz parte do discurso retórico, do sofisma, da exposição. Uma fotografia não tem impacto nenhum se você não parar e olhar para ela atenciosamente. Assim como uma obra de arte não tem nenhum impacto se não for contemplada com atenção. A arte depende do contato íntimo com o público para adquirir qualquer relevância. É só quando há olhares atentos que uma obra realmente passa a existir. A arte é de uma fragilidade tamanha que depende de quem não é artista para firmar sua existência.
Quando esse contato entre público e obra acontece, uma nova realidade se instaura. A relação entre obra e público obriga o espectador a entrar em um estado de admiração temporária, que é sempre voluntária. O espectador precisa querer encontrar a obra. Quando esse encontro e essa admiração se estabelecem, há uma transfiguração da obra e do público. A obra expele tensões, anseios, dúvidas, reflexões, certezas e desejos incrustados na alma do espectador. E ele descobre, na hora, esses mesmos sentimentos que antes não havia contemplado. Arte e espectador criam-se a si mesmos quando entram em contato um com outro.
O papel da arte é treinar nosso olhar para adquirir essa atitude atenciosa e contemplativa para com o mundo.
Esse fenômeno explica duas características comuns de uma boa obra de arte. A primeira é a acepção quase mística de que algumas obras parecem gerar uma transformação real em nossas vidas. Quando nos debruçamos sobre elas com atenção, uma marca se desenha em nós. Quando nos lembramos de determinada situação de nossas vidas, parece que aquela obra nos acompanha. Uma música volta a tocar, uma imagem retorna à nossa memória. São peças que enriquecem nossa vida interior e, por isso, vemos nelas algo de divino.
A segunda característica é a constante ambivalência no sentido das obras. Quantas discussões já não ouvimos sobre o sentido de uma obra? Seria esse sentido algo inteiramente subjetivo? Ou teria a obra a capacidade de conduzir inteiramente a percepção do público? Nem um e nem outro: uma obra é fruto da sua relação com o público. Ela herda características do seu criador, ao mesmo tempo em que adquire novas características, dependendo do espectador com quem está se relacionando. Seu poder se instala exatamente entre o limite do quadro e o olho de quem a está vendo. Um público desatento e pretensioso pode não absorver tudo que uma obra tem para oferecer. São como os corações de pedra narrados na Bíblia. Almas duras que não têm abertura suficiente para captar o sentido poético da produção artística.
O papel da arte é treinar nosso olhar para adquirir essa atitude atenciosa e contemplativa para com o mundo. Uma bela obra de arte não nos fará mudar de ideia a respeito de nada, a não ser que ela gere em nós um questionamento (que é nosso, e não dela) sobre a própria vida. Esse questionamento nasce da nossa admiração pela obra — e não de alguma fórmula mágica que ela esconde para, secretamente, nos convencer do que quer que seja.
Por isso, gosto de uma foto em particular, tirada por mim, em que não podemos ver o rosto da Virgem. Fiz essa fotografia com câmera analógica na capela do Sítio da Aroeira, no interior paulista, em setembro de 2022. Nela, vemos a imagem de Nossa Senhora que fica no centro do altar da capela. Ao me aproximar da imagem para registrá-la, notei que o reflexo impedia que eu visse o rosto da Virgem. Isso me chamou atenção. Na face de Nossa Senhora, ao invés de um semblante, vemos um Mark Rothko. Qual é o rosto da Virgem? Em parte, o rosto da Virgem é o teu se tu olhares com atenção. Em parte, o rosto da Virgem foi o meu quando a vi pela primeira vez. Em parte, o rosto da Virgem é o dela — e não conseguimos acessá-lo totalmente, tamanha sua pureza e tamanho o nosso pecado. O rosto existe e não existe, dependendo de quem vê.
Essa ambivalência treina nossa humildade. Não conseguimos extrair tudo das obras porque nós mesmos somos incompletos. Da mesma maneira que não conseguimos ver a santidade à nossa volta, porque há um defeito em nosso olhar. O não-rosto da Virgem nos obriga a querer vê-la. E querendo vê-la talvez possamos um dia nos encontrar face a face com Aquele que nos criou. O poder da arte, se é que ela tem algum, é de nos provocar esse desejo. Essa provocação está sempre aberta, basta aceitarmos recebê-la. A arte não passa disso: de uma leve provocação. Cabe a nós decidirmos o que fazer com ela.
Matheus Bazzo é fundador da Lumine e da Minha Biblioteca Católica.
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