No Brasil, a academia é pior do que uma caixa preta. Nós sabemos o que entra e, especialmente, quanto entra, mas não sabemos o que sai (o que deveríamos saber, se ela fosse apenas uma caixa preta), nem o que acontece lá dentro (o que é característico das caixas pretas em geral).
Eu passei a maior parte da minha vida lá dentro. Entrei como aluno, condição na qual permaneci da graduação até o doutorado, e saí como professor titular. Exerci a docência por 35 anos até a minha aposentadoria. Fui também administrador, tendo inclusive, por alguns anos, assessorado o reitor da minha Universidade (a Unesp) no delicado campo do cumprimento dos contratos de trabalho docentes. Vi muita dedicação abnegada e mesmo altruística, mas também muita falcatrua: professores que mantinham atividade profissional remunerada fora da Universidade mesmo tendo assinado com ela um contrato de dedicação exclusiva em tempo integral. Gente que não se vexava até mesmo em desviar recursos da instituição para uso e benefício pessoal. Raramente havia punições, pois o corporativismo acadêmico tem a densidade e o poder coercitivo de uma omertà napolitana.
Concursos acadêmicos, de ingresso ou de carreira, são quase sempre jogos com cartas marcadas dos quais ninguém reclama, nem mesmo os prejudicados, pois sabem que qualquer marola só servirá para afogá-los. Defesas de teses não raramente são intermináveis shows de exibicionismo onde quase nunca ninguém é reprovado, ainda que eventualmente merecesse, para não manchar a reputação do orientador. Há estruturas de poder que encobrem vários sistemas de exploração, sendo a intelectual apenas uma delas. Enfim, há de tudo ali dentro, do bom e do pior, mas sempre encoberto por um silêncio obsequioso que ninguém ousa quebrar.
A administração de um clube de futebol tem maior apelo jornalístico do que a administração de uma Universidade Pública. Só para se ter uma ideia do que estou falando: o orçamento aprovado para 2024 da USP, a maior universidade brasileira, é de R$ 8,6 bilhões.
O público em geral e a imprensa parecem olimpicamente desinteressados do assunto. Aquele porque, em sua maioria, não vê a academia como um ambiente que lhe diz respeito, como se não fosse ele a pagar por tudo (uma vez que nossa academia é majoritariamente financiada com dinheiro público), e não fosse o seu benefício o fim último proclamado em prosa e verso pela retórica acadêmica, mormente quando nas inevitáveis greves da categoria, previsíveis e periódicas como as enchentes, ela se apresenta, bastante hipocritamente, como escrava do bem público. Essa por incompetência e falta de disposição para escalar os muros acadêmicos. A administração de um clube de futebol tem maior apelo jornalístico do que a administração de uma Universidade Pública.
Só para se ter uma ideia do que estou falando: o orçamento aprovado para 2024 da USP, a maior universidade brasileira, é de R$ 8,6 bilhões; deste montante R$ 7,7 bilhões são de repasse do governo estadual de São Paulo; dinheiro público, portanto. São Paulo tem ainda a Unicamp e a Unesp, a segunda e a quinta melhores universidades do país, respectivamente, que juntas com a USP consomem 9,57% das arrecadação do ICMS do Estado, 5,02% para a USP, 2,34% para a Unesp e 2,19% para a Unicamp. A FAPESP, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, a primeira e maior do gênero no país, recebe um repasse do governo estadual estabelecido em 1% da receita tributária do Estado, o que deve lhe dar algo por volta de R$ 3 bilhões em 2024. Em nível federal não é diferente, há 69 universidades federais no país, além de instituições de fomento como CAPES e CNPq, que oferecem uma grande variedade de bolsas e auxílios. Tudo financiado pelo contribuinte. As universidades federais consomem juntas cerca de R$ 6 bilhões por ano, o orçamento anual do CNPq fica em cerca de R$ 1,3 bilhão e o da CAPES em torno de R$ 3,1 bilhão. A coisa varia de ano para ano, mas são sempre muitos e muitos bilhões de reais pelos quais nem público, nem imprensa se interessam, mas deveriam, pois é dinheiro público.
Mas não é só questão de dinheiro, mas de práticas. Eu diria mesmo, principalmente de práticas.
Uma análise exaustiva e minimamente profissional do tema requereria muito mais esforços, tempo e espaço do que estou disposto a investir no momento, mas gostaria de dar aqui um passo nessa direção, levantando uma pontinha do tapete.
Uma das modalidades de bolsa oferecidas pelo CNPq tem o nome de Bolsa de Produtividade em Pesquisa e, segundo a agência, é “destinada aos pesquisadores que se destaquem entre seus pares, valorizando sua produção científica segundo critérios normativos, estabelecidos pelo CNPq, e específicos, pelos Comitês de Assessoramento (CAs) do CNPq. [...] Os critérios, independentemente do CA, deverão contemplar os seguintes itens:
- a) mérito científico do projeto;
- b) relevância, originalidade e repercussão da produção científica do candidato;
- c) formação de recursos humanos em nível de Pós-Graduação;
- d) contribuição científica, tecnológica e de inovação, incluindo patentes;
- e) coordenação ou participação em projetos e/ou redes de pesquisa;
- f) inserção internacional do proponente;
- g) participação como editor científico;
- h) participação em atividades de gestão científica e acadêmica”.
Examinemos a coisa.
O item (a) diz respeito ao projeto de pesquisa que cada candidato a bolsa deve apresentar e faz óbvio sentido, pois um bom pesquisador deve ter um projeto de pesquisa de boa qualidade. Mas o que é um pesquisador, precisamente? Em poucas palavras, podemos defini-lo como alguém que produz conhecimento original em sua área de pesquisa, reconhecido como tal e acatado pela comunidade internacional, uma vez que ciência não é atividade provincial. E como quantificar a qualidade da pesquisa produzida? É consenso internacional que a qualidade de uma pesquisa se mede principalmente pela qualidade do veículo onde ela é publicada e dada a conhecer à comunidade internacional e pelas citações que recebe. Boas pesquisas são publicadas em boas revistas internacionais, ou em livros editados por grandes editoras internacionais, e rendem citações em bons trabalhos de colegas mundo afora. Isso justifica os itens (b), (d), (e) e (f).
Na análise que farei, eu usarei o índice-h e o índice-h10 para medir citações. Há outros, mas esses são facilmente acessíveis no Google Citations, além de amplamente utilizados no mundo todo. Um pesquisador tem índice-h igual a um número n se ele tem n artigos com pelo menos n citações cada um. Portanto, se ele tem, digamos, um artigo apenas com 1.000 citações, ele tem índice-h igual a 1, o mesmo que um pesquisador com um artigo também, porém com uma única citação. O índice, portanto, não mede o impacto do artigo, mas do pesquisador. Note que subir do índice n para o n+1 vai ficando cada vez mais difícil à medida que n cresce. O índice-h10 é mais simples, ele diz apenas quantos artigos o pesquisador tem com pelo menos dez citações cada um, que é o mínimo que se espera de um artigo que efetivamente traz alguma contribuição original. O Google Citations também fornece o número total de citações que um pesquisador tem. Embora não seja a ideal, pois há vários modos mais ou menos desonestos de inflar esses índices, os quais infelizmente não posso esmiuçar aqui, essa plataforma fornece dados para inferir a originalidade e o impacto do trabalho do pesquisador.
Outro fator importante a considerar é onde o pesquisador publica o seu trabalho. Todos conhecem as revistas que realmente importam em suas áreas. Em Filosofia, por exemplo, a área que analisarei aqui, são Journal of Philosophy, Nous, Philosophical Quarterly, Erkenntnis, Mind, Synthese, Philosophia Mathematica e tantos outros. Não há nenhuma revista brasileira no primeiro time (Q1); a melhor, Manuscrito, a quarta na América Latina, tem nível Q2 e seu índice-h, o mesmo acima, mas adaptado para revistas, é igual a 5. Por comparação, a revista Synthese tem índice-h igual a 77. Isso quer dizer que um artigo em Synthese tem muito mais chances de ser citado do que um em Manuscrito. Em resumo, quanto melhor a revista, mais difícil publicar nela e maior a divulgação e o impacto do trabalho publicado. Por isso, onde o trabalho é publicado é medida da sua qualidade. Daqui se tira uma conclusão importante, um suposto pesquisador qualquer que só publica em português e no Brasil, não importa o seu índice-h, nem pesquisador é; ele não satisfaz os quesitos (b), (d) e (f) do CNPq.
Há três quesitos restantes que merecem alguma discussão, (c), (g) e (h). Nenhum deles tem diretamente nada a ver com atividade de pesquisa. Teoricamente, claro, uma pesquisa de doutorado é uma pesquisa original, mas da parte do orientando, não do orientador. Ela pode se transformar em artigos publicados, mas o orientador não pode nunca constar como autor principal. Na maior parte das vezes, porém, mormente em Filosofia, teses de doutorado ficam a juntar pó nas estantes, contribuindo em nada, efetivamente, para o aumento do conhecimento. Contar orientação como critério de concessão de bolsa tem a meu ver outra finalidade, que é garantir reserva de mercado para professores com acesso a programas de pós-graduação em seus próprios departamentos. Um médico, por exemplo, num Departamento de Medicina, que queira pesquisar Ética Médica desde uma perspectiva filosófica não terá como satisfazê-lo.
Quanto melhor a revista, mais difícil publicar nela e maior a divulgação e o impacto do trabalho publicado. Por isso, onde o trabalho é publicado é medida da sua qualidade.
Além disso, o requisito permite que professores com parca ou medíocre produção “compensem” com orientações e atividades burocráticas, sobrepujando pesquisadores de melhor qualidade, mas sem acesso a programas fornecedores de massa orientável em boa quantidade. O que é em si mesmo aberrante, pois como pode um mau pesquisador ser responsável pela formação de pesquisadores? Os itens (g) e (h) são ainda mais escandalosamente destinados a favorecer professores sem produção científica, mas com séria dedicação à política acadêmica ou poder de decisão sobre publicações de colegas. Sim, editoração dá trabalho, mas não é trabalho de pesquisa.
Assim, ao que me parece, os critérios de avaliação de propostas de pesquisa são marotamente desenhados para permitir que pesquisadores ruins e mesmo não pesquisadores "politicamente" bem colocados possam usufruir de bolsas de produtividade em pesquisa. E isso acontece? Sim, como veremos.
As bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq estão classificadas em níveis, as de nível 2, destinadas a pesquisadores juniores, e as de nível 1, a pesquisadores seniores. O nível 1 subdivide-se em quatro subníveis, classificados em ordem ascendente de D a A. Um pesquisador nível 1A, portanto, é supostamente o que há de excelente em sua área no Brasil e deve, evidentemente, satisfazer todos os critérios acima elencados (caso contrário, deveria estar alocado em nível inferior). Vejamos.
A lista de bolsas em curso em Filosofia na página do CNPq contém 11 pesquisadores 1A. Alguns poucos têm efetivamente altos índices h e h10, publicam nas melhores revistas internacionais, cooperam com eminentes especialistas internacionais, satisfazendo sobejamente os critérios da agência, mas não todos. Vários deles sequer constam do Google Citations; logo, seus índices h e h10 não podem sequer ser computados. Esse descaso para com uma métrica internacionalmente reconhecida mostra desprezo para com o próprio processo de avaliação de mérito profissional. Pergunto-me como o CNPq avalia, segundo os seus próprios critérios, a produtividade desses pesquisadores. Porém, consultando o currículo de um desses na plataforma Lattes do CNPq, verifica-se que quase todas as suas publicações são em português e em revistas nacionais inexpressivas, ou seja, flagrantemente contra, pelo menos, o critério (f) acima. Um outro pesquisador 1A, cuja produção pode ser consultada na plataforma Google Scholar, tem suas principais publicações – que, porém não são muitas – em revistas de alto nível, mas seus índice-h e índice-h10 são muito baixos para um pesquisador que ostenta essa classificação. Há pesquisadores em níveis mais baixos, por exemplo 1C, com bem melhores índices h e o triplo de citações. Parece que nesse caso, os requisitos (c), (g) e (h) foram decisivos. O último pesquisador de elite aleatoriamente consultado tem índices em princípio suficientes. Porém, novamente o provincianismo aparece assim que se vai ao detalhe. Ele não tem nenhuma publicação internacional, em inglês, a língua franca da academia, e nenhuma publicação em revista de primeiro time. O "pesquisador" não está, evidentemente, satisfazendo, pelo menos, o critério (f). E quando se vai verificar a fonte do bom índice-h, as coisas ficam bastante ruins, o trabalho mais citado tem quase exclusivamente citações nacionais, comprovando o provincianismo do pesquisador.
Uma pesquisa mais séria e mais abrangente certamente mostraria mais problemas na avaliação objetiva dos pesquisadores do CNPq e de todo o processo de concessão de bolsas de produtividade em pesquisa pela Instituição. Todas as informações que prestei aqui são públicas e podem ser facilmente verificadas. O problema é que raramente o são, o que contribui para que muitas vezes ações de compadrio e avaliações em desacordo com normas internacionais se sobreponham a métricas internacionalmente reconhecidas e universalmente adotadas. O que, se nada mais, é malversação de dinheiro público.
Está mais do que na hora da caixa preta da academia ser aberta.
Jairo José da Silva é professor titular de matemática da UNESP e autor de "O que é e para que serve a matemática" (UNESP, 2023).
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