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Carne, leite e ovos começaram a ser substituídos por alimentos como pasta de amendoim, pão vegano e carne de soja.
Imagem ilustrativa.| Foto: Marcos Morelli/SMCS

Viver extremos parece ser uma característica do Brasil. Em um momento em que o país recebe eventos de grande porte como o Rock in Rio, Lollapalooza e Villa Mix, estamos imersos em uma crise por alimentos. Hoje, o número total de pessoas sem alimentos ultrapassa os 33 milhões; a insegurança alimentar brasileira superou a média global, afetando sobretudo mulheres, famílias pobres e pessoas com idade entre 30 e 49 anos – que compõem um grupo etário com mais filhos. O que isso tem a ver com os eventos promovidos pela indústria nacional do entretenimento? A intersecção se dá no desperdício de alimentos e na reflexão sobre como combater essa distorção social. E a doação de alimentos poder ser a chave para mitigar a crise e alimentar os brasileiros famintos.

O Brasil desperdiça 27 milhões de toneladas de alimentos por ano, de acordo com dados da Organização Mundial das Nações Unidas, sendo que 80% desse desperdício ocorre no manuseio, transporte e nas centrais de abastecimento. Traçando um paralelo com a indústria de grandes eventos, esse desperdício acontece, em larga escala, no descarte incorreto de alimentos produzidos pelas lanchonetes e restaurantes criados para alimentar o público e os trabalhadores no antes, durante e pós (processo de desmonte) festivais, shows e eventos esportivos. As empresas fornecedoras de alimentação estão pouco ou nada familiarizadas com as alternativas legais de direcionamento do excedente de produção, nem tampouco com o potencial de impacto positivo – e aqui podemos considerar tanto pela perspectiva social como de meio ambiente – ao evitar que toneladas de alimentos próprios para o consumo tenham por destino o lixo.

Por que o tema da doação de alimentos pela indústria do entretenimento não conquistou o espaço que deveria à luz da escalada da fome e do impacto do desperdício de alimentos no meio ambiente?

Os temas fome, desperdício e doação de alimentos têm, por isso e pelo contexto de país que nos encontramos, de estar na ordem do dia dessa indústria do entretenimento e dos profissionais que nela atuam. Sabemos que os padrões das legislações brasileiras que regem o tema são extremamente rígidos, mas temos de entender que é necessário mergulhar no fazer solidário para concretizar a doação desse alimento, que sobrou e que é seguro, fazendo com que ele chegue à população vulnerável, sendo que muitas dessas pessoas em situação de insegurança alimentar vivem no entorno pobre desses eventos com investimentos milionários.

E por que o tema da doação de alimentos pela indústria do entretenimento não conquistou o espaço que deveria à luz da escalada da fome e do impacto do desperdício de alimentos no meio ambiente? Há algumas hipóteses que passam pela falta de conhecimento das legislações que regem a doação segura; pelo medo do nutricionista de perder seu registro profissional – já que a responsabilidade técnica e jurídica pela doação correta recai sob os ombros dele –; ou pela falta de olhar o desperdício da porta para fora, ou seja, a ausência da visão do potencial que esse alimento próprio para o consumo e seguro tem de combater a fome de quem reside em locais muito próximos a esses eventos.

É aqui que entra a Lei 14.016, que trata da doação de alimentos no Brasil. Aprovada em 2020, a legislação legitima ações de combate ao desperdício de alimentos ao regulamentar a doação de excedentes de alimentos para o consumo humano. A questão a ser levantada é a ampla disseminação dessa lei entre os profissionais que atuam nessa indústria do entretenimento, inclusive os nutricionistas. Para além da responsabilidade técnica desses profissionais, há a responsabilidade social implícita das empresas organizadoras, sobretudo, porque a fome destrói a dignidade humana.

De concreto temos toneladas de resíduos que estão indo para o lixo, mas esses “resíduos” são comidas adequadas. Na Gastromotiva tivemos um exemplo recente de doação de 600 sanduíches que sobraram de um campeonato de game; na ocasião, lidamos com um impasse para que a doação fosse efetivada por conta do desconhecimento da lei. Sabemos, no nosso fazer cotidiano, que a desinformação sobre a aplicação da lei tem prejudicado muito o processo de acelerar a doação. Esse é um fenômeno relativamente normal no Brasil: a cada nova lei aprovada passamos por um tempo que compreende a disseminação e o entendimento dessa legislação, antes do uso propriamente dito a partir da apropriação dela. Entretanto, no caso da doação de alimentos, enquanto esse tempo corre vagaroso, muitas pessoas passam fome. É preciso acelerar esse processo de aplicação da lei em prol do combate ao desperdício.

A Lei 14.016, e sua respectiva atualização, é muito positiva do ponto de vista dos receptores da doação, mas, por outro lado, temos uma indústria que precisa se apoderar e fazer uso dela como instrumento, inclusive de responsabilidade social e ambiental. Precisamos ter mais doadores protagonistas do uso dessa lei.

Em um momento em que a agenda de grandes eventos começa a ser retomada no Brasil – e que é inegável o poder que têm de sensibilizar um número enorme de pessoas –, é necessário usar esse potencial para falar sobre responsabilidade socioambiental ativa e forte da indústria de entretenimento. Temos que mover esse ponteiro do combate à fome e ao desperdício de alimentos.

David Hertz é chef, cofundador da Gastromotiva e do Movimento de Gastronomia Social. É Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial e UN Food Systems Champion pela ONU. Adriana Leal é nutricionista da Gastromotiva.

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