Desde há muito tempo os meios de comunicação se encontram divulgando discursos clamorosos adversos ao novo ensino médio, e nos primeiros meses deste ano eles aumentaram bastante. As falas antagônicas têm partido de professores, alunos, especialistas em educação, estudiosos do assunto, parlamentares e representantes de organizações sociais.
O vozerio contrário é recheado de críticas consistentes. Dentre elas podem ser mencionadas as seguintes: a maioria das escolas não possui estrutura para colocar o atual currículo em prática; muitos estudantes precisam frequentar mais de uma escola para cumprir toda a grade curricular; estados em situação de crise fiscal diminuem despesas com a educação, reduzem currículos, precarizam a oferta de educação de qualidade por meio de múltiplas parcerias privadas; a dificuldade de acesso ao ensino superior tende a incidir mais nos alunos da rede pública; o turno integral não á atrativo para o aluno mais pobre que necessita trabalhar; a opção profissionalizante estimula a entrada precoce no mercado de trabalho e desestimula a busca pelo ensino universitário.
É deveras relevante o aumento da pressão contestatória para que ele venha a ser celeremente revogado.
Segundo uma quantidade expressiva de educadores, esses inadmissíveis acontecimentos estão se manifestando devido ao fato de que o planejamento do novo ensino médio não foi debatido com todos os setores da educação. Sua concretização ocorreu de modo afoito e abreviado, sem a devida publicação dos pareceres aprovados, em meio à suspensão de audiências públicas, sem a imprescindível construção de um consenso com as instituições educacionais e científicas, sem levar em conta muitas sugestões de entidades sociais relevantes e no desenlace de um governo impopular e sem legitimidade.
Também sustentam que ele visou, prioritariamente, algumas fundações empresariais, haja vista que reivindicações por elas apresentadas receberam o devido atendimento. Outrossim, muitos profissionais da educação defendem que é urgente e necessário formular e implementar um outro modelo de ensino médio que tenha sentido para a atual geração, embora o governo de plantão não tenha se mostrado disposto a derrogá-lo e nem adotar mudanças radicais, mas apenas realizar ajustes pontuais. Já foi anunciada a suspensão de seu cronograma e o Ministério da Educação abriu uma consulta pública para receber avaliações e sugestões num prazo de três meses podendo ser prorrogado se for necessário.
Vale ressaltar que a referida insatisfação geral tem muito a ver com os fundamentos sustentadores desse hodierno ensino médio. Note-se que eles colocam em destaque o conhecido referencial teórico segundo o qual todo processo educativo escolar é, ao mesmo tempo, primariamente condicionado e secundariamente condicionante. Tais fundamentos são o neoliberalismo decadente, a globalização e a questionável pós-modernidade. Essa tríade se apresenta como o atual cenário onde o ensino em questão se encontra inserido e muito dominado pelos influxos que dele emanam.
Com efeito, os planejadores desse ensino inseriram na base curricular algumas propostas inerentes ao ideário pós-moderno tais como o ensino a distância, a interdisciplinaridade, as atividades optativas e o projeto de vida. Justificativas para elas não faltam. Encontra-se divulgado que o ensino a distância, decorrente do irrefreável desenvolvimento tecnológico, desenvolve a autonomia e a responsabilidade do aluno e permite acessar o conteúdo estudado a qualquer momento. Que a interdisciplinaridade é superior à disciplinaridade porque ao integrar diversas áreas do saber possibilita ao jovem instaurar uma percepção mais ampla e profunda a respeito dos fenômenos e desenvolver uma habilidade mais consistente para solucionar diversos tipos de problemas. Que a oferta de atividades opcionais onde se incluem as matérias eletivas e os itinerários formativos visa atender interesses diversificados existentes entre os estudantes. Que o projeto de vida, aperfeiçoável no decorrer da existência, se revela como um importante recurso definidor dos rumos que o jovem deve trilhar no atual período histórico onde a realidade circundante apresenta elevados níveis de instabilidade, descontinuidade e imprevisibilidade.
Inseriram também algumas proposituras resultantes do avanço da globalização, dentre as quais se encontram o aprendizado de línguas estrangeiras: o inglês e o espanhol e a emergência do multiculturalismo. Segundo consta, o domínio de línguas diferentes tem a ver com a possibilidade de prosseguir nos estudos em outros países, chance de conseguir trabalharem recantos alternativos do planeta e oportunidade de morar temporária ou definitivamente em outras nações. Por sua vez existe a alegação de que o contato de várias culturas num mesmo local exige o respeito aos hábitos e às crenças próprios das pessoas originárias de outras regiões do mundo.
Encaixaram ainda certas recomendações oriundas do neoliberalismo decadente, quais sejam, a formação profissional e o empreendedorismo. Vale notar que educadores neoliberais consideram como certo que a capacitação ocupacional por meio de cursos variados, inclusive aqueles considerados exóticos, se apresenta como uma maneira de evitar ou pelo menos de minimizar o abandono escolar, ao mesmo tempo em que torna os jovens relativamente aptos a adentrarem num mercado de trabalho formal em crescente encolhimento. Aquiescem também que o ato de iniciar e implementar novos negócios é vantajoso para as atuais gerações porquanto não só as tornam autônomas como criam oportunidades de trabalho para outras pessoas.
Nenhum esforço intelectual precisa ser feito para perceber que estas recomendações oriundas da pós-modernidade, da globalização e do neoliberalismo decadente, inseridas na nova base curricular em marcha, apesar de terem alguma importância, expressam de maneira límpida, o apadrinhamento de uma concepção pedagógica de feição adaptadora, destinada a brindar os alunos com um repertório de competências adequadas às exigências do hodierno momento histórico. Dito de outra forma, ela visa apenas o mero ajuste do aluno aos requerimentos da dinâmica realidade circundante. Tal ponto de vista é diametralmente oposto ao pensamento pedagógico de cunho transformador, que mira aguçar o senso crítico do aluno, torná-lo contestador das situações nas quais se encontra inserido, incutir nele um dosado senso de rebeldia e transvertê-lo num tomador de iniciativas destinadas a alterar conjunturas e estruturas mantenedoras de injustiças e desigualdades sociais.
Observe-se que a concepção curricular em prática é tão conformadora que apesar de estar previsto na Constituição e na Lei de Diretrizes e Bases a finalidade da formação para o exercício da cidadania, praticamente nada foi planejado para alcançar esta meta. Aliás inexiste na nova base curricular um explícito conceito de cidadania que sirva de fundamento para a concretização de práticas educativas voltadas para o preparo do cidadão, e, consequentemente, nenhuma estratégia pedagógica direcionada a este preparo. Portanto, é válido admitir que o currículo em pauta deva estar a serviço da formação de um cidadão passivo que se caracteriza pelo apego à esfera privada, pela defesa dos interesses pessoais e pela distensa aceitação de ser governado pelos governantes, em detrimento da figura do cidadão ativo, um militante da esfera pública, uma pessoa que almeja influenciar as decisões políticas, um ente que quer governar os governantes, um indivíduo voltado para causas beneficiadoras da coletividade, principalmente de seus setores desfavorecidos.
Não provoca surpresa então o fato de o atual ensino médio estar sendo amplamente rejeitado porquanto seu planejamento foi influenciado por um conjunto negativo de fatores, vem sendo precariamente concretizado e se revela como uma simples resposta aos condicionantes sociais do atual momento histórico. Seu escopo adaptador atende, prioritariamente, aos interesses dos setores hegemônicos e conservadores da sociedade que cultuam o funcionalismo e rejeitam os desarranjos emergentes. Ao servir de modo prioritário a esta pequena parcela da população ele mostra seu caráter antidemocrático e sua carência de legitimidade. Portanto, não cabe reformulá-lo como querem seus criadores e autoridades educacionais do país. É deveras relevante o aumento da pressão contestatória para que ele venha a ser celeremente revogado.
Antônio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutor em Educação pela USP e autor de “Democracia e Ensino Militar” (Cortez) e “A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania” (Pontes).
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