Álvaro Vieira Pinto nasceu póstumo, tal como Espinosa e Nietzsche. Sofreu, eis uma hipótese, um injusto assassinato de reputação intelectual. Admirado por pensadores da estatura de Gérard Lebrun, da USP, que dele muito divergiu, não obstante, foi defenestrado por boa parte da academia. Esquecimento similar sofreu outro grande pensador brasileiro, Gustavo Corção, que dele muito divergiu e igualmente escreveu um ensaio sobre as questões da técnica e da tecnologia.
Mesmo com este apagamento, sua obra, reeditada e reestudada nos últimos anos, revela um pensador originalíssimo, fundamental especialmente àqueles situados na periferia do capitalismo, nos países subdesenvolvidos. Soma-se à fortuna crítica parcial, no duplo sentido do termo, acerca das obras publicadas, aquela que existe em quantidade ainda tímida sobre o seu mais original ensaio, a saber, O conceito de tecnologia, em dois volumes. Graças a um manuscrito datilografado pela esposa de Vieira Pinto, revisado pelo autor, que passou de mão em mão e chegou ao editor da Contraponto, César Benjamin, tivemos acesso a esse ensaio de um dos gigantes do pensamento nacional e universal.
Tese original, pensada a partir dos problemas dos países subdesenvolvidos, costura argumentos ousados e muito lúcidos. E, não podemos deixar de dizer, corajosos. Por exemplo, destrona Heidegger de seu pedestal hermenêutico e o acusa de obscurantismo conceitual. Esses excertos do livro já valeriam a leitura não pelo fato de Vieira Pinto simplesmente discordar das teses de Heidegger, mas por o fazer com finíssima argumentação e lucidez irretocáveis.
Ao sugerir a nossa saída do senso comum filosófico, de uma prática colonizada de análise de textos, Álvaro Vieira Pinto, que dominava várias línguas e linhagens filosóficas, desponta por ter ousado dispor de seu vasto saber a serviço de teses muito originais, feitas a partir e para os países subdesenvolvidos, articulando conceitos tais como consciência crítica, nacionalismo, desenvolvimentismo e tecnologia. Tudo isso a partir de um olhar filosófico, o que é absolutamente original em estudos dessa área realizados no Brasil.
Por outro lado, em viés estritamente acadêmico, seguindo o figurino francês, sua tese de doutorado sobre Platão, defendida na Sorbonne, foi discutida e aprovada por vários helenistas consagrados. Tempos depois da defesa de cátedra no Brasil, na Universidade do Brasil, futura UFRJ, assume o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e, com o golpe civil-militar de 64, sofre perseguição e assassinato de reputação. Aprisionaram o pensador em seu próprio país, como um Prometeu dos trópicos, logo após sua volta do exílio em 1968, inicialmente cumprido na Iugoslávia, por um ano, e posteriormente no Chile. Algo lamentável do ponto de vista intelectual e político, pois se tratava de uma das mentes mais brilhantes e originais do país, em área a nós algo exótica, flor no deserto, a filosofia.
Mal compreendido por figuras da altura intelectual do Padre Lima Vaz, que escreveu resenha muito negativa a Consciência e Realidade Nacional, ensaio de Vieira Pinto publicado em 1960, tem sido redescoberto no interior mesmo de sua vasta e densa obra, principalmente depois das publicações de 2005, acima referidas, e uma de 2008, A sociologia dos países subdesenvolvidos.
É importante, assim, comemorar a reedição, de outubro de 2020, do livro sobre o qual a seguir tecerei breves notas, a saber, Ciência e Existência: problemas filosóficos da pesquisa científica. Escrito originalmente no Chile, nos tempos do exílio do autor, em 1967, e depois publicado no Brasil pela editora Paz e Terra, em 1969, e reeditado em 1979 e em 1985. O livro Ciência e Existência apresenta as teses de Vieira Pinto sobre os problemas filosóficos da pesquisa científica, tema tão atual quanto, em geral, equivocamente abordado. Analisa seus fundamentos necessariamente ético-políticos e históricos. Tudo isso, sempre, sob o foco de luz ultra branca da filosofia. Vieira Pinto surpreende com sua formação múltipla, que passou pela medicina, física, matemática e veio a se fixar na filosofia.
Do ponto de vista da estrutura, Ciência e existência é longo, 528 páginas, e dividido em 22 capítulos. Não tratarei do tema de cada capítulo, mas chamarei a atenção para alguns pontos-chave presentes nesta divisão. O capítulo I é um desses pontos na medida em que estabelece as principais intenções e teses do livro. O título já indica a tese do fundamento filosófico, e da importância das teorias filosóficas para o estabelecimento da natureza da pesquisa científica e de seus problemas. Com efeito, este capítulo se intitula A necessidade da compreensão filosófica da pesquisa científica. Deve chamar a atenção do leitor a tese presente no título do capítulo V, a saber, A historicidade da razão e a origem do conhecimento metódico. A seguir, no capítulo VI, Vieira Pinto propõe uma Teoria da cultura. Todos estes temas presentes em um livro sobre pesquisa científica, eis o ponto a ser destacado. No capítulo XII, após tratar de questões de lógica formal e lógica dialética, entre outras, Vieira Pinto propõe discutir os condicionamentos materiais, culturais e sociais do trabalho científico. Assim, a tese da ciência neutra e desvinculada do terreno de onde surgiu é novamente posta em xeque.
Para arrematar o caráter social, ético, histórico e político da prática científica, Álvaro Vieira Pinto ainda dedica alguns capítulos a estas questões de fundo tão determinantes da pesquisa científica. No capítulo XVI, por exemplo, trata do tema A consciência, a alienação do trabalho e o método científico. No capítulo XXI, tematiza os Fundamentos sociais da consciência do pesquisador para, ao final do livro, no capítulo XXII, tratar A ciência como processo histórico de domínio da natureza pelo homem. Aqui Vieira Pinto aborda, por meio de seus sofisticados argumentos filosóficos, a tese já presente em Descartes, a saber, dos homens como “senhores e possuidores da natureza”(René Descartes. Discurso do Método). Porém, dado o materialismo de Vieira Pinto, os fundamentos histórico-sociais de seu sistema filosófico, as conclusões serão diversas das cartesianas.
Algumas passagens da obra dão o quilate da filosofia de Vieira Pinto: “Uma filosofia da pesquisa científica, que incorporará naturalmente toda a reflexão sobre a metodologia da investigação, a lógica do raciocínio científico e a sociologia da ciência, é o pressuposto indispensável à formação da consciência do trabalhador neste campo da cultura, tão indispensável quanto os conhecimentos particulares técnicos de que deve estar munido para empreender sua atividade. A reivindicação desta exigência de formação teórica do pesquisador é a primeira, e talvez a mais importante tese que desejamos defender nestas páginas(Ciência e existência: problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de Janeiro: ed. Contraponto, 2020, p. 16).
No mesmo sentido, escreve que “a teoria não está ausente na obra dos pesquisadores, que aparentemente se despreocupam destas discussões chamadas “especulativas”; o que está ausente é a consciência dela”.
E para assinalar, de maneira ainda mais enfática, o fundamento histórico do conhecimento, incontornável até mesmo ao cogito, afirma o autor: “O fato do conhecimento, que tomamos por ponto de partida para a nossa reflexão teórica, é o fato histórico do conhecimento, na sua máxima amplitude[...]. A inserção do “cogito”, na sua base histórica, desmascara a ingenuidade essencial que o afeta. Como filósofo, posso ignorar o processo histórico, e imaginar-me uma consciência original, primordial[o cogito], que se propõe “fundar” o conhecimento, segundo desejaram Descartes ou Husserl; mas o processo histórico não me ignora”. E arremata o filósofo: “A consciência tem, desde o seu aparecimento, e por necessidade do seu processo constitutivo, a dimensão social”.
Não é preciso muito esforço cognitivo para perceber tanto a altura intelectual de Vieira Pinto, quanto a capacidade do autor de se fazer claro sem perder qualquer grau de densidade filosófica que a matéria sobre a qual se debruça demanda. Por fim, uma passagem da vida do autor que diz muito sobre dois pontos diversos. Primeiro, por um lado, o enorme respeito de ao menos um intelectual uspiano por Vieira Pinto, não obstante as discordâncias explicitadas em resenha publicada. Refiro-me a Gérard Lebrunem A “Realidade Nacional” e seus equívocos, texto publicado no livro Intelectuais e política no Brasil: a experiência do ISEB, organizado por Caio Navarro de Toledo. Segundo, por outro lado, o incômodo que a autonomia intelectual e a originalidade filosófica de Vieira Pinto provocavam em alguns intelectuais da mesma USP. O fato é narrado em livro de José Ernesto de Fáveri, O legado de Álvaro Vieira Pinto na voz de seus contemporâneos, no momento em que entrevista Jorge Roux, que estudou filosofia na USP, foi professor desta disciplina em diversas escolas e universidades, e que frequentou o apartamento de Vieira Pinto no período em que este último estava “exilado” no próprio país.
Segue um trecho da entrevista: “Fáveri: Contra quais ideias, posições políticas, a postura do autor se manteve mais forte? Roux: A dominação externa pelo imperialismo. Todos os autores que tivessem dimensão filosófica, ele acolhia, estudava, debatia. Não dava importância ao jornalismo filosófico, isto é, escrever filosofia nos jornais, a não ser que fosse um autor de envergadura, por bem ou por mal, como era o pessoal do ISEB e o pessoal da USP. [...] Seu pensamento não chegava ao público, e quando chegava era um público restrito”.
A resposta completa de Roux (que não reproduzo na íntegra, mas recomendo a leitura) dá a dimensão da importância de Vieira Pinto para o pensamento filosófico nacional. Aponta, por outro lado, para razões de disputa de poder no campo intelectual, as quais impediram uma justa e mais ampla recepção, pela academia, do pensamento de Vieira Pinto. É importante, penso, que edições como esta, muito bem cuidada, dos livros do nosso talvez mais ousado, erudito, importante e sofisticado filósofo, sejam divulgadas, por meio de análises críticas, resenhas, em periódicos, como é o caso desta Gazeta, preocupados com reflexões ousadas e profundas acerca da nação. E, igualmente, podemos agir, no campo acadêmico, para que Álvaro Vieira Pinto tenha, ainda que tardiamente, a recepção crítica que sua obra filosófica de fôlego merece. A filosofia agradece. Alea jacta est (a sorte está lançada).
Luiz Carlos Montans Braga é professor de Filosofia do DCHF da UEFS em licença. É doutor em Filosofia, mestre em Direito, graduado em Direito e em Filosofia. É autor dos ensaios “A lente e o pince-nez: Machado de Assis, Espinosa e a cultura política no Brasil” (Cadernos Espinosanos), “Álvaro Vieira Pinto e a filosofia política da técnica” (Revista Tecnologia e Sociedade) e do livro “A Cidade e o Medo: filosofia, direito, literatura” (Max Limonad). Pesquisa autores da filosofia brasileira, especialmente Álvaro Vieira Pinto e Gustavo Corção.
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