Impulsionando a inovação e a economia de recursos no setor público por meio de tecnologia de ponta, as chamadas govtechs surgem para quebrar os estereótipos do senso comum e mostrar que os governos podem sim ser inovadores e promover serviços tão bons ou até melhores que os privados. Mais que isso, num cenário de competição global entre nações, com desafios imensos para o investimento público no contexto de recuperação pós-pandemia, a eficiência da gestão pública passa a ser um imperativo.
Atualmente, há 135 govtches no Brasil de acordo com levantamento da Associação Brasileira de Startups (ABStartups) que oferecem soluções das mais diversas, procurando sempre aprimorar os serviços prestados pelos órgãos governamentais com a implementação de tecnologia nos canais de comunicação, na segurança pública, no sistema de saúde e na educação. Essas empresas podem atender exclusivamente governos, mas também podem oferecer seus produtos a clientes privados de forma a proporcionar melhorias para o público em geral.
Há um ambiente propício sendo desenvolvido nos dois lados do balcão – público e privado – para que a inovação floresça com auxílio das govtechs.
A interface com startups possibilita o acesso a tecnologias e soluções inovadoras, que podem contribuir sobremaneira para a gestão governamental, ao conferir instrumental inovador para algumas questões tradicionalmente enfrentadas. A gestão e aproveitamento de dados, por exemplo, é uma atividade que pode se aproveitar de novas ferramentas trazidas pelas govtechs. Ferramentas de análise de dados, por sua vez, são aliadas de primeira linha na definição de políticas públicas, aumentando a racionalização na atuação estatal.
O caminho para contratação dessas soluções, no entanto, não costuma ser dos mais tranquilos. O regime tradicional de contratações públicas nunca teve a ventilação necessária para permitir contratações experimentais, com resultado incerto e com empresas sem um histórico de com a administração pública. Os órgãos de controle, por sua vez, tradicionalmente têm a visão tacanha de que agentes públicos devem ser responsabilizados por contratações que não gerem o resultado esperado. Não há a compreensão de que a contratação de uma experimentação é um contrato de risco, e pode ao final não atingir o resultado inicial almejado. O Marco Legal das Startups (Lei Complementar 182/2021) introduziu alguns facilitadores nesse processo, prevendo, pela primeira vez, um regime específico para a contratação de soluções de tecnologia pelos governos.
De acordo com o procedimento indicado pela lei, para contratar esse tipo de serviço a administração pública deve publicar edital de licitação indicando o problema a ser resolvido pela empresa contratada e os resultados esperados. Diferentemente do edital de licitação da Lei 8.666/1993, não é necessário descrever a solução técnica buscada, havendo um espaço para a empresa licitante criar ou inovar. No contexto de startups, esse espaço é bastante positivo considerando que as soluções oferecidas nem sempre são conhecidas e muitas vezes não estão consolidadas nem mesmo dentro da própria empresa.
Portanto, trata-se de possibilidade trazida pela legislação alinhada com a tendência de contratações por resultado na administração pública, em que não se contrata com base em inputs (unidades de serviço, insumos), mas sim em outputs (o resultado prático em si, independentemente do caminho percorrido para atingi-lo).
Após a seleção das govtechs por comissão especial, é firmado um Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI), que tem vigência limitada a 12 meses, prorrogável por igual período. Na prática, o CPSI é um contrato de experiência, no qual a solução é testada e eventualmente reformulada ou aprimorada. Esse momento de teste também é essencial para startups, que normalmente passam pelo período do Product Market Fit – traduzido como “ajuste do produto ao mercado” –, que é o momento em que a empresa testa e aprimora sua solução conforme a demanda do cliente e os fatores de mercado. O valor máximo do CPSI não pode exceder R$ 1,6 milhão.
Passada a fase de teste, o órgão licitador pode celebrar o contrato de fornecimento. Este pode ter vigência de 24 meses, prorrogável por igual período, e máxima remuneração de R$ 8 milhões. O novo regime de contratação trazido pelo Marco Legal das Startups tem seu mérito: há alguns anos, pensar em ter governos como clientes era uma realidade distante e praticamente impossível para a maioria das startups. Nesse sentido, a lei foi bastante disruptiva, principalmente quando comparada com o caminho tradicional, que seria pelo regime de licitações da Lei 8.666/1993 e, posteriormente, da Lei 14.133/2021 – que pouco dispôs sobre startups e empresas inovadoras.
Ainda assim, é salutar a previsão da Lei 14.133/2021 ao permitir que os procedimentos de manifestação de interesse possam se restringir, em alguns casos, a startups (art. 81, § 4º). Afinal, muitas vezes o órgão governamental sequer imagina que enfrenta determinado problema ou que alguma situação poderia ser gerenciada de forma mais eficiente. Nessa perspectiva, a necessidade de o órgão buscar ativamente soluções para um problema somente com recursos internos nem sempre é o caminho mais adequado. A utilização do PMI, mecanismo em que a empresa tem papel ativo na estruturação da contratação, é bastante proveitoso ao ecossistema de startups.
A legislação é ainda tímida para adotar modelos alternativos de contratação: as amarras do modelo geral podem ser incompatíveis com a flexibilidade exigida no desenvolvimento de soluções por startups. Uma boa ideia e um produto com bom potencial é apenas o início do desafio para as govtechs. Ainda assim, há um oceano azul de oportunidades: não só o governo brasileiro, mas governos em geral têm muito a ganhar com o emprego de tecnologias e também com as estruturas enxutas e versáteis do modelo startup.
Ciente das oportunidades de melhorias para a gestão pública que a contratação para inovação pode trazer, no final de 2022 o Ministério da Economia, o Tribunal de Contas da União e a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) lançaram a Plataforma de Compras Públicas para Inovação (CPIN), que contém um roteiro detalhado a ser seguido por agentes públicos interessados em contratações inovadoras. Há, portanto, um ambiente propício sendo desenvolvido nos dois lados do balcão – público e privado – para que a inovação floresça com auxílio das govtechs.
Caio Loureiro e José Augusto Dias de Castro são advogados e sócios da TozziniFreire Advogados; Victor Fonseca é advogado e head do programa de inovação de TozziniFreire Advogados.
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