
Ouça este conteúdo
Eis que recrudesce o debate sobre o ativismo judicial, a ponto de ser objeto de discórdia entre ministros da mais alta instância do Poder Judiciário. O ponto sensível remete ao que se entende como ativismo judicial, uma vez que o conceito se reveste de uma certa complexidade, contendo múltiplas interfaces que demandam uma análise profunda e cautelosa.
O ativismo judicial pode ser, inclusive, praticado do ponto de vista pejorativo, mais precisamente ideológico, pendendo para ambos os lados, a depender do poder hegemônico. A atual conjuntura político-ideológica brasileira constitui fator determinante para estimular ainda mais a prática do ativismo judicial que vem se fortalecendo paulatinamente, em anos recentes.
O Poder Judiciário, especificamente o Supremo Tribunal Federal, tem sido o protagonista desse cenário, demonstrando maior poder relativamente aos Poderes políticos (Legislativo e Executivo), o que permite afirmar que aquele órgão tem detido a sua hegemonia entre os Poderes da República. A finalidade do presente artigo ainda não é a análise do ativismo judicial (cuja abordagem será objeto do próximo artigo).
O que se pretende no atual momento é evidenciar, a princípio, as suas características e demonstrar como elas estão presentes nas condutas e atos daquele tribunal, cujo poder tem se mostrado, inclusive, notoriamente ideológico. A despeito de se fazer uma análise imparcial, não se pode deixar de observar o fortalecimento da Primeira Turma do STF, cuja unanimidade é de causar inveja aos membros de qualquer partido político ou de grupos sociais.
Essa é a conjuntura política e jurídica do Brasil. Totalmente desestruturada, perdida e à beira do abismo, especialmente do ponto de vista do direito e da justiça. Perdeu-se o senso do que é certo ou errado. A lei se tornou um instrumento particular de cada intérprete
Aquela unanimidade é pública e notória quando se trata do processamento e julgamento dos réus que compõem os núcleos divididos pela PGR no âmbito da trama golpista. Não há qualquer dúvida sobre a suposta “comprovação” da culpabilidade daqueles réus, com alguma pequena exceção, quando realmente não se tem como condenar, dada a ausência escancarada de provas que impede a imputação – decisão que também goza da mesma unanimidade.
Na mesma toada, a unanimidade torna a impressionar na fixação da dosimetria das penas impostas a cada réu, com uma união que remete ao clássico Os Três Mosqueteiros – “Um por todos e todos por um” –, cujo lema é o ponto comum da união dos membros da Primeira Turma da mais alta instância do Poder Judiciário.
O colegiado existe para que os seus membros possam externar as suas posições doutrinárias e colaborar para o enriquecimento intelectual, por meio da divergência de ideias – essência de um regime democrático e, por óbvio, de um poder técnico e apolítico que tem a responsabilidade e a competência constitucional para julgar os processos que lhes são destinados e obter o resultado mais justo para as partes envolvidas.
É nesse contexto que se lamenta um fato recente que atingiu o ministro Fux, quando apresentou o seu voto relativamente aos réus do Núcleo 1 da trama golpista, sendo hostilizado pelos seus pares por divergir frontalmente dos demais votos. Igualmente lamentável e decepcionante é o fato de Ferrajoli, um renomado jurista italiano, defensor do garantismo penal, ter criticado o seu voto, absolvendo o ex-presidente e demais réus, sem sequer o ter lido. Tal conduta denuncia a militância ideológica que se sobrepõe à envergadura de um jurista respeitado internacionalmente por seus pares.
Esse é o mesmo câncer que acomete, há algum tempo, a mais alta instância do Poder Judiciário, sem olvidar que a doença adquire o status de ser contagiosa a ponto de ser seguida por magistrados de instâncias inferiores daquele Poder, talvez com receio de seguir a Constituição e as leis, sob risco iminente de sofrerem possíveis reprimendas que poderiam advir de uma conduta respeitosa ao direito.
O STF tem adotado o ativismo judicial voltado à proteção de um lado ideológico, a exemplo de casos que foram registrados na história dos Estados Unidos, quando a Suprema Corte manteve a segregação de negros (caso Plessy v. Ferguson, em 1896), validando as chamadas Leis de Jim Crow e, posteriormente, em 1954, reverteu aquela decisão (no caso Brown v. Board of Education), evidenciando o seu ativismo judicial – ora favorável aos conservadores, ora contra –, relativamente ao ingresso de negros em escolas de brancos.
Essa é a principal característica do ativismo judicial. Ele se move como pêndulo de um relógio antigo, a depender dos interesses político-ideológicos em jogo: ora para a direita, ora para a esquerda. Existem algumas variáveis que acabam determinando a forma de manifestação do ativismo judicial, que, a depender do contexto em análise, pode ser confundido com a “judicialização” de temas sensíveis ao Poder Legislativo (eleito pelo voto popular) e que, receoso de tomar decisões impopulares, acaba remetendo tais temas ao Poder Judiciário.
Nesse sentido, o STF permitiu a prática de aborto de feto anencefálico, definiu a questão do nepotismo, a greve de agentes públicos, além de outros temas que não tinham disciplina legal e que foram decididos pelo tribunal, poupando sutilmente o Poder Legislativo (Congresso Nacional) de se envolver em temas polêmicos e que poderiam causar a perda de dividendos eleitorais (voto), além de cobrir, oportuna e eventualmente, a lacuna legislativa que envolvia aqueles temas.
VEJA TAMBÉM:
A despeito da confusão conceitual acerca do ativismo judicial, é conveniente apresentar algumas variáveis que são fundamentais para a melhor compreensão desse tema: a) a natureza do caso concreto (se for o caso); b) a conjuntura política reinante no que diz respeito à provável hegemonia de um dos Poderes Públicos (Legislativo, Executivo ou Judiciário); c) a existência ou não de legislação adequada e/ou lacunosa ou mesmo inconstitucional; e d) a ideologia política dominante, a qual inevitavelmente se serve de um dos Poderes hegemônicos para, convenientemente, levar a cabo as suas aspirações políticas.
No tocante às variáveis b) e d), a história se encarrega de testemunhar e corroborar aquela questão (conforme se destacou com relação à Suprema Corte nos Estados Unidos), que muitas vezes é considerada a forma sutil de se praticar o ativismo judicial em um contexto de um Poder Judiciário ocasionalmente forte.
No contexto brasileiro, basta relembrar, a esse respeito, a divisão dos membros do STF, à época da Operação Lava Jato. Havia duas alas. A ala dos então chamados ministros “punitivistas”, que aplicavam rigorosamente os dispositivos constitucionais e legais no julgamento de processos que tratavam de crimes contra a Administração Pública, como corrupção ativa e passiva, peculato, assim como lavagem de dinheiro e formação de organização criminosa.
A segunda ala era formada por ministros denominados de “garantistas”, que, sob o manto de se aterem ao que supostamente seria constitucional e legal, tendiam a livrar corruptos de uma condenação definitiva. É incrível como a realidade naquele tribunal mudou para pior.
A despeito de terem conseguido, de forma meticulosa, articulada e planejada, enterrar aquela operação sob fundamentos “processuais”, como a incompetência da 13ª Vara Criminal de Curitiba, seguida de acolhimento de provas ilícitas, como os diálogos hackeados entre juízes e procuradores responsáveis por aquela operação, os “garantistas”, que deveriam seguir a Constituição (incisos LIII e LVI do seu artigo 5º) e as leis, lograram êxito sobre os “punitivistas”, acabando de vez com o combate à corrupção no Estado brasileiro.
No tocante à suposta incompetência territorial do juízo de Curitiba, qualquer estudante de direito sabe que a incompetência territorial é relativa e pode se prorrogar no tempo quando uma das partes não se manifesta, conforme dispõe o artigo 108 do CPP e a Súmula nº 33 do STJ. Em outras palavras, a suposta incompetência territorial do juízo de Curitiba não poderia mais ser contestada, uma vez que já havia sido prorrogada com a ausência de manifestação de qualquer natureza.
Além do fato inequívoco de que o acolhimento dos diálogos hackeados constitui prova ilícita, conforme dispõe o inciso LVI do artigo 5º da Carta Magna, aqueles diálogos entre procuradores e magistrados fazem parte da sua rotina de conversar e discutir sobre os casos concretos que estão processando e julgando, a exemplo dos ministros do STF que costumam debater com procuradores e advogados. Assim, tanto o dinheiro que tinha sido devolvido aos cofres públicos quanto as condenações e consequentes prisões dos corruptos foram revogadas ou anuladas sob os fundamentos de incompetência e suspeição do juízo de primeiro grau. O tempo passou e a história se repete, embora com os sinais invertidos.
Sob o pressuposto de uma “vingança privada”, quando o Estado não detinha o poder de processar e julgar condutas ilícitas ou mesmo sob a égide do direito penal do inimigo, o STF adota o mesmo ativismo judicial – dessa vez para transformar narrativas em crimes graves –, visando atingir e acabar (como fizera com a Operação Lava Jato), embora por razões diferentes, com representantes políticos que se opõem ao sistema imposto no âmbito do Estado.
De um lado, a finalidade de eliminar do cenário político não apenas o líder daqueles representantes políticos da direita, como também estes; e, de outro, a ânsia mal contida de prolongar a vingança, por motivo fútil, dos juízes e procuradores que atuaram na Operação Lava Jato, entre eles o juiz Moro, sob a pretensa acusação de calúnia que abre a possibilidade de condenação penal pari passu com a declaração de inelegibilidade – o que acabaria de vez com o seu futuro político.
Na mesma direção, o então procurador da República Deltan Dallagnol foi condenado pelo TSE por “fraude à Lei da Ficha Limpa”, em razão do seu pedido de demissão, supostamente motivado pelo enfrentamento de processos internos, o que acarretou a perda do seu mandato parlamentar.
É oportuno observar que a divisão em núcleos dos réus da suposta organização criminosa “armada” remete, coincidentemente, ao famoso Power Point difundido à imprensa por Deltan Dallagnol, que culminou em sua condenação por abuso de direito e consequente pagamento de indenização por danos morais ao atual Presidente da República.
Como se isso tudo não bastasse, um exército de pessoas simples e desavisadas foi trancafiado sob a acusação de abolição violenta contra o Estado Democrático e golpe de Estado, sem armas e sem forças armadas que pudessem levar à configuração e enquadramento daqueles crimes, conforme preveem os artigos 359-L e 359-M do Código Penal.
Os fundamentos apresentados para a “comprovação” de atos voltados à ruptura institucional de cada réu incurso em cada um daqueles núcleos não têm a menor relação de culpabilidade, sem qualquer nexo causal – especialmente no que se refere às acusações de “desinformação” e incitação ao golpe imputadas aos réus do Núcleo 4.
Na mesma direção, as imputações dirigidas ao Núcleo 1 e ao Núcleo 2 não conseguiriam formar a “convicção de um juiz de primeiro grau”, muito menos de um colegiado da cúpula do Poder Judiciário que detém o “notável saber jurídico”.
Essa é a razão pela qual o ministro Fux teve a ombridade e a honradez de exteriorizar o seu voto, sem ceder à tentação de seguir o rebanho, como forma de poupar a sua relação com os demais pares. Preferiu seguir a sua consciência e contribuir, mesmo que solitário, com a justiça.
Nessa direção, um dos principais fundamentos do seu voto favorável à nulidade de todos os atos decisórios daquela ação penal envolvendo o Núcleo 1 foi a declaração de incompetência “absoluta” da Primeira Turma daquele tribunal para o processamento e julgamento de todos os réus, uma vez que não detêm o foro por prerrogativa de função – o chamado foro privilegiado.
Diferentemente do que ocorrera com a Operação Lava Jato, em que a suposta incompetência relativa (territorial) já teria sido prorrogada e não poderia mais ser mudada, a incompetência absoluta é, por si só, razão imediata de declaração de nulidade daquela ação penal que, à luz do direito, deveria estar sob a competência do juízo de primeiro grau, sem olvidar que a jurisprudência do STF teria mudado após a denúncia da PGR, no que se refere ao ex-presidente e aos demais corréus.
A trama foi novamente – como fora com a Operação Lava Jato – cuidadosamente armada para dar a impressão à sociedade brasileira de uma defesa inconteste da democracia, nem que, para isso, os direitos fundamentais que sustentam um Estado Democrático de Direito tivessem que ser sacrificados. A esse respeito, o direito à liberdade de expressão, pilar de um regime democrático, tem sido paulatinamente restringido, sem que tais restrições sequer sejam previstas na Carta Magna e na legislação atinente ao tema.
Como cláusula pétrea que é, o seu núcleo não pode ser atingido sob qualquer hipótese, à exceção do que a própria Constituição se encarrega de disciplinar: no caso de ofensa à honra e imagem das pessoas, ou seja, quando o agente incorre em calúnia, difamação ou injúria, sofrendo, portanto, as punições de natureza civil e penal.
Na mesma direção, o direito fundamental de ir e vir, consagrado pela Constituição de países de berço democrático, tem sido banalizado e vilipendiado pela cúpula do Poder Judiciário, que deveria ser o seu guardião. Novamente, no tempo da Operação Lava Jato, uma das acusações dirigidas ao juízo competente era a de que as prisões preventivas teriam sido alongadas.
Hoje, o STF mantém prisões preventivas de cidadãos comuns e representantes políticos de forma abusiva, arbitrária e autoritária, passando longe do que determina a Carta Magna e o Código de Processo Penal, uma vez que não há fundamentos para a manutenção daquelas prisões e, tampouco, fatos novos que constituam elementos robustos de prova capazes de impedir o direito fundamental de ir e vir daquelas pessoas.
Para além disso tudo, os representantes políticos detidos sob a alegação de “desinformações” e discursos de ódio remetem apenas e exclusivamente à ideologia de direita, ignorando-se totalmente o cometimento dos mesmos “crimes” pelos representantes da ideologia de esquerda, que segue incólume. Ademais, aqueles “crimes” demandam previsão legal inexistente no ordenamento jurídico brasileiro.
Essa é a conjuntura política e jurídica do Brasil. Totalmente desestruturada, perdida e à beira do abismo, especialmente do ponto de vista do direito e da justiça. Perdeu-se o senso do que é certo ou errado. A lei se tornou um instrumento particular de cada intérprete, principalmente quando se trata da mais alta instância de um Poder que deveria ser, a todo custo, técnico e apolítico.
É deprimente testemunhar um voto isolado de um ministro que ainda tem forças para evidenciar e denunciar, ao seu modo – ou melhor, ao modo da Constituição e da lei –, as injustiças que estão sendo cometidas, sem que qualquer entidade competente tenha a dignidade de protestar e lutar contra o ativismo judicial do STF.
Independentemente de qualquer ideologia, é preciso voltar aos trilhos do direito e seguir os dispositivos constitucionais e legais, sob pena de o país se tornar uma terra sem lei, onde os mais fortes determinam o que deve ser feito para a satisfação de seus interesses em jogo.
A julgar pelo andar da carruagem, o país está carente de investimentos estrangeiros diretos, em razão da insegurança jurídica e do atual estado de coisas, notadamente sob as questões de governança, governabilidade e legalidade no tocante a qualquer transação ou contrato de negócios, tendo em vista que tais temas estão enfraquecidos, além da ausência de segurança pública.
Trata-se de um jogo de dominó. O ativismo judicial, a inércia do Poder Legislativo, em decorrência de a maioria dos seus membros estarem sob a espada do STF, assim como o chefe do Poder Executivo, que deve a sua descondenação e liberdade àquele tribunal, constituem as pedras que serão responsáveis por um total desabamento da economia e da política, pela ausência de justiça e da segurança jurídica que têm o potencial de levar o país à bancarrota.
Vera Chemim é advogada dedicada ao estudo e pesquisa de Direito Constitucional com mestrado em Administração Pública (Finanças Públicas) pela FGV de São Paulo.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



