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O Brasil não marcha rumo a uma guerra santa – resposta a Luiz Philippe de Orleans e Bragança

O Brasil não precisa se preparar para uma guerra santa. Precisa se preparar para continuar sendo o que sempre foi em seus melhores momentos: um país onde diferenças coexistem sem que uma precise temer a outra (Foto: Imagem criada utilizando Gemini/Gazeta do Povo)

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O artigo do príncipe Luiz Philippe de Orleans e Bragança, O Brasil e a próxima Guerra Santa, recentemente publicado, apresenta ao público uma narrativa dramática: a ideia de que o Ocidente estaria prestes a sucumbir a um suposto “projeto islâmico” de conquista demográfica e cultural. Essa leitura, além de imprecisa, incorre em generalizações que estimulam medo social, desinformação religiosa e hostilidade entre brasileiros de diferentes crenças.

A demografia europeia não confirma a tese do príncipe. A afirmação de que “80% da França será não cristã em poucas décadas” não encontra suporte em projeções sérias. A França, de fato, tornou-se majoritariamente secular não muçulmana. O crescimento do número de pessoas sem religião é um fenômeno global, ligado à modernidade, ao individualismo religioso e à pluralização cultural. Reduzir esse processo à presença muçulmana é um equívoco que troca complexidade por espantalhos.

E mesmo onde o Islã cresce, isso não se traduz em rejeição aos valores democráticos, nem em “imposição da Sharia”. Milhões de muçulmanos franceses, alemães e ingleses vivem suas vidas plenamente inseridos no tecido social trabalham, estudam, pagam impostos e desejam o mesmo que qualquer cidadão: paz, dignidade e futuro.

O Islã não é um bloco monolítico com agenda política unificada. A tese da “saturação sem confronto” pressupõe que 1,9 bilhão de pessoas compartilham um único projeto geopolítico. Isso é tão absurdo quanto afirmar que todos os cristãos do planeta desejam restaurar a teocracia medieval.  O Islã é plural: abriga liberais, conservadores, progressistas, místicos, seculares, tradicionalistas e reformistas. Países de maioria muçulmana variam de democracias vibrantes a regimes autoritários como ocorre também entre países de maioria cristã.

Atribuir a violência extremista de grupos isolados ao próprio texto sagrado ou à totalidade dos fiéis é uma falha que estudos acadêmicos já refutaram repetidamente. Violência religiosa não é exclusividade de um lado e reduzir sofrimentos reais a argumentos políticos é irresponsável. Sim, existe perseguição a cristãos em alguns países como há perseguições de muçulmanos em vários outros, e isso deve ser denunciado com vigor. Mas transformar esse sofrimento em munição para promover medo de muçulmanos no Brasil é estratégia que desonra as vítimas.

Perseguições religiosas ocorrem também contra muçulmanos, judeus, hindus, ateus e minorias diversas. A maior parte dos migrantes muçulmanos na Europa foge de guerras, perseguições políticas, fome, regimes autoritários ou busca melhores condições econômicas. Não há qualquer prova de coordenação entre governos europeus e movimentos islâmicos para promover “substituição civilizacional”.

O Brasil não precisa se preparar para uma guerra santa. Precisa se preparar para continuar sendo o que sempre foi em seus melhores momentos: um país onde diferenças coexistem sem que uma precise temer a outra

Em quase todos os países europeus, muçulmanos continuam sendo minorias pequenas e não exercem controle político. Narrativas de “invasão islâmica” não encontram suporte nos dados e alimentam apenas medos identitários. O mal não tem monopólio religioso; tem apenas oportunidade quando o medo substitui o diálogo.

O Brasil não está ameaçado por muçulmanos está ameaçado pela manipulação do medo. O Brasil é historicamente católico, culturalmente cristão e hoje também plural. Povos indígenas, espiritualidades afro-brasileiras, judeus, muçulmanos, budistas, espíritas e ateus dividem o mesmo território sem que isso tenha provocado qualquer “colapso civilizacional”. A comunidade muçulmana brasileira é pequena, integrada e conhecida pelo respeito às instituições republicanas. Sugerir que ela representa um risco civilizatório beira a ficção política.

A verdadeira ameaça não vem “de fora”, mas da erosão da confiança entre cidadãos erosão alimentada por discursos que fabricam inimigos imaginários. O autor afirma que “onde impera o Islã, impera a barbárie”; muçulmanos seguem “práticas atrozes”; a sharia seria automaticamente aplicada onde quer que muçulmanos vivam. Essas são generalizações falsas e discriminatórias. Reduzir 1,9 bilhão de pessoas a uma caricatura agressiva é tanto factualmente incorreto quanto moralmente perigoso.

O cristianismo não está em risco de extinção e não precisa de pânico para continuar existindo. A fé cristã, quando forte, não teme a presença do diferente. Onde há liberdade religiosa e espaço para diálogo, o cristianismo floresce por convicção, não por isolamento. O próprio Jesus advertiu contra a tentação de enxergar o próximo como ameaça. A história comprova: o cristianismo cresce quando inspira, não quando se vitimiza. O apelo à “guerra santa do século XXI” é, portanto, uma distorção teológica e política.

O artigo sustenta que o substantivo “civilização” só poderia ser associado ao adjetivo “cristã”. Essa afirmação contraria amplamente o consenso acadêmico. A formação da Europa deriva de matrizes: greco-romanas, judaicas, cristãs, iluministas, humanistas, científicas e laicas. Atribuir toda a civilização europeia exclusivamente ao cristianismo constitui simplificação histórica e descaracteriza a pluralidade que definiu o continente ao longo dos séculos.

O Brasil não precisa se preparar para uma guerra santa. Precisa se preparar para continuar sendo o que sempre foi em seus melhores momentos: um país onde diferenças coexistem sem que uma precise temer a outra. Transformar o Islã em ameaça e o cristianismo em vítima é politizar a fé e militarizar a convivência um caminho perigoso demais para ser trilhado a partir de conjecturas.

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É igualmente necessário esclarecer que o Islã não combate qualquer religião. Ao contrário, sua tradição reconhece e honra judeus e cristãos como Povos do Livro, afirmando que todos os profetas enviados por Deus de Abraão a Jesus fazem parte de uma mesma cadeia espiritual. O Alcorão não se apresenta como ruptura hostil, mas como continuidade e complemento de uma linhagem monoteísta compartilhada. A convivência inter-religiosa, e não o conflito, sempre foi o princípio que orientou a relação entre muçulmanos e outras fés.

Essa visão torna ainda mais relevante recordar que Dom Pedro II, antepassado direto da família Orleans e Bragança, demonstrava profundo respeito pela cultura árabe e pela civilização islâmica. O Imperador estudava árabe, citava o Alcorão, manteve correspondência com estudiosos muçulmanos e visitou mesquitas em suas viagens ao Oriente. Sua admiração pela produção intelectual islâmica da poesia à filosofia é fartamente registrada em seu diário de viagem e em suas anotações pessoais.

Nesse sentido, causa estranhamento que justamente um sucessor de Dom Pedro II adote discurso de hostilidade contra comunidades muçulmanas, quando o próprio Imperador via no mundo árabe-islâmico um campo de conhecimento, diálogo e enriquecimento cultural, nunca uma ameaça civilizacional. A tradição histórica brasileira não é de conflito religioso, mas de abertura, respeito e intercâmbio valores que a ANAJI reafirma e defende.

É, no mínimo, curioso que um parlamentar que se declara monarquista em pleno regime republicano concentre esforços em análises civilizatórias superficiais, enquanto ignora desafios concretos e urgentes que afligem o próprio país que representa. Antes de buscar explicações externas ou narrativas ideológicas sobre a suposta decadência de sociedades alheias, seria mais coerente voltar o olhar para a realidade nacional uma realidade marcada por desigualdades profundas, índices alarmantes de violência e práticas políticas que fragilizam a confiança da população em suas instituições.

O Brasil figura entre os países com maiores índices de violência contra a mulher em um País de maioria Cristã e não Muçulmana, enfrentando números persistentes de feminicídios, agressões domésticas e violações de direitos básicos. Não se trata de mera “crise cultural”, mas de um problema estrutural que exige responsabilidade legislativa, políticas públicas eficazes e comprometimento ético daqueles que ocupam cargos de poder. É legítimo questionar: de que serve defender modelos idealizados de organização estatal se questões fundamentais, como a proteção da vida das mulheres brasileiras, seguem relegadas a segundo plano?

A mesma coerência esperada de um representante público também deveria se aplicar ao enfrentamento de falsas lideranças que manipulam seguidores, espalham desinformação e exploram a fé, a ideologia ou a desesperança de parcelas vulneráveis da população. O papel de um deputado não é reverberar discursos que inflamam bolhas, mas contribuir para o fortalecimento da cidadania, da crítica responsável e da construção de um ambiente público mais honesto.

Por fim, antes de atribuir a supostos inimigos internos ou externos a responsabilidade por crises morais ou culturais, seria mais apropriado dedicar atenção aos casos de corrupção, má gestão e práticas políticas que historicamente atrasam o desenvolvimento do país. Focar nesses temas reais, urgentes e comprováveis seria um gesto mais alinhado ao interesse público do que promover análises nostálgicas ou diagnósticos civilizatórios baseados em impressões.

Em uma República, espera-se dos parlamentares compromisso com a verdade, com os fatos e com as necessidades concretas da população. A crítica externa pode ter seu lugar, mas ela perde legitimidade quando desvia o foco das responsabilidades imediatas e inadiáveis que lhes cabem como agentes públicos. Ao afirmar que o Brasil seria uma “frente de combate” contra a “invasão islâmica”, o artigo O Brasil e a próxima Guerra Santa extrapola limites do debate público e promove retórica de conflito religioso incompatível com a Constituição brasileira, que estabelece a laicidade do Estado e garante liberdade de crença.

Em respeito aos cristãos, aos muçulmanos e à sociedade brasileira, este direito de resposta reafirma: a paz não se constrói inflamando fantasmas, mas iluminando fatos. Se o príncipe erra ao despertar medos, erra ainda mais ao sugerir inimigos onde há cidadãos.

Girrad Mahmoud Sammour é presidente da Associação Nacional dos Juristas Islâmicos (ANAJI).

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