Quando criou o acrônimo “BRICs” em 2001, dificilmente o economista Jim O’Neill, poderia imaginar que seu termo fosse definir uma organização geopolítica desta magnitude. Originalmente, a sigla era uma forma de se referir à países do chamado “Terceiro Mundo” (ou “Sul Global” na linguagem “atualizada”) que cresciam vertiginosamente ao adotar práticas relativas de livre-mercado. Em 2006, os governos do Brasil, Índia e Rússia deram os primeiros passos para tornar o BRICS em algo mais tangível, às margens de uma reunião na ONU. Já em 2011, o governo sul-africano se tornou a letra “S” do acrônimo, transformando “BRICs” em “BRICS”. Hoje, a organização possui um secretariado e uma presidência rotativa, assumida recentemente pela Rússia, que é o país-sede da 16ª cúpula dos BRICS, realizada no dia em que este artigo estava sendo escrito.
A cúpula atual é a primeira reunião dos BRICS que conta com os membros recém-admitidos (Egito, Etiópia, Emirados Árabes Unidos e Irã), que se juntaram aos cinco membros “originais”, entre eles o Brasil, na cidade de Kazan. A reunião, cujo anfitrião foi o presidente Vladimir Putin, lista como prioridades a “integração e cooperação” entre os membros, de modo a criar “mecanismos” em áreas diversas como segurança, cultura, tributação e até entre os parlamentos nacionais.
O que os parlamentos do Irã, Rússia e China têm a oferecer em boas práticas democráticas ou direitos civis aos países do BRICS como o Brasil? O que parlamentares brasileiros poderiam aprender sobre as práticas de governança desses países?
O que imediatamente salta aos olhos, porém, é a imensa discrepância entre as práticas dos países-membros e o que propõem no fórum. Mais preocupante ainda são as possíveis ramificações para o Brasil. Os países dos BRICS vem aos poucos ocupando o centro da política exterior governista, em substituição a parceiros mais tradicionais como os Estados Unidos, a União Europeia e nossos vizinhos sul-americanos. Cabe então, ver o que se propõe nos Protocolo da atual Cúpula dos BRICS e como essa aproximação pode ser extremamente danosa para o Brasil.
Um dos primeiros itens da agenda são as “Prioridades em Políticas Públicas e Segurança”. Esse item descreve pontos importantes, como a “capacidade de cooperação contra o terrorismo” ou o “diálogo sobre práticas anticorrupção”. Porém, como fica a reputação de um fórum que pretende debater “medidas contra o terrorismo” que convida o Irã a participar ativamente? A República Islâmica do Irã notoriamente financia grupos terroristas no Oriente Médio como o Hamas, Hezbollah e os Houthis. O apoio a grupos terroristas e paramilitares que mantém populações inteiras reféns em Gaza, no Iêmen, Iraque, Líbano e Síria definitivamente não tornam o Irã um país apto a discutir práticas “antiterroristas”. A atual desestabilização do Líbano, infelizmente um palco da guerra entre Israel e o Hezbollah, não teria sido possível sem o apoio financeiro, material e logístico da República Islâmica. Tampouco seriam os ataques terroristas perpetrados pelo Hamas em outubro do ano passado, impossíveis de ser realizados sem o apoio sempre-presente do Irã.
Acerca de “medidas contra a corrupção”, o que pode-se dizer de um país como a Rússia? O país é notoriamente uma “cleptocracia”, em que empresários ligados ao governo rotineiramente rapinam os recursos do país em troca de proteção e a participação do poder público nos lucros. Não à toa, o país é famoso por oligarcas como Roman Abramovich, Oleg Deripaska e Arkady Rotenberg, que mantém suas fortunas graças à proximidade com o presidente Putin (Rotenberg, por exemplo, treina artes marciais com o presidente desde a adolescência). A maioria destes oligarcas tem seus nomes em listas internacionais de crimes financeiros. Com a atual guerra na Ucrânia, (que o portal de notícias dos BRICS chama de “Regime de Kiev”,) as práticas financeiras para driblar as sanções econômicas se tornaram uma prática de Estado na Rússia.
Outro item do Protocolo do BRICS, intitulado de “Cooperação nas esferas culturais e humanitárias” também parece totalmente descolado da realidade e pouco pode interessar ao Brasil. Enquanto não é necessário dizer que os países membros são detentores de riquíssimas culturas, seus atuais governos deixam bastante a desejar na área humanitária. A China age de forma brutal contra todas as culturas que não se encaixam na visão autoritária do Partido Comunista Chinês. O Tibet, que é ocupado pelo vizinho desde a década de 50 do século passado, viu a maioria de seus templos destruídos e sua cultura apagada. O próprio Dalai Lama, símbolo do budismo tibetano, foi forçado a se exilar na Índia para escapar da perseguição chinesa.
Já o Irã, tem uma polícia que rotineiramente espanca adolescentes por se recusarem a cobrir os cabelos com o véu obrigatório. Há alguns anos, após os imensos protestos causados pela morte da jovem Mahsa Amini (assassinada brutalmente por não usar o véu ao sair na rua), o país foi tomado pelo movimento “Mulher, Vida e Liberdade”, (em tradução livre), que visa maior igualdade de direitos entre os sexos no país. Ao invés de conceder o mínimo de igualdade, a teocracia preferiu reprimir as manifestações com extrema violência – o chamado “Plano Noor”.
Seguindo esses temas, um ponto que poderia passar despercebido chama a atenção: “Defendemos a institucionalização da cooperação interparlamentar (sic)”. O que os parlamentos do Irã, Rússia e China têm a oferecer em boas práticas democráticas ou direitos civis aos países do BRICS como o Brasil? O que parlamentares brasileiros poderiam aprender sobre as práticas de governança desses países? Ainda que a Rússia tenha vários partidos, fica claro que as instituições do país nada mais são do que órgãos que só servem para fazer oposição controlada e legitimar o Poder Executivo. A China, por sua vez, nem mantém o “verniz” de permitir vários partidos, o único partido permitido é o Partido Comunista Chinês. O Legislativo, Judiciário e Executivo brasileiro nada têm a aprender com países que rotineiramente violam direitos civis de suas populações, não permitindo sequer a liberdade de associação, de expressão, e nem religiosa (no caso chinês).
A questão que fica é: o que faz o Brasil nessa companhia? Enquanto é inegável a importância econômica dos laços comerciais sino-brasileiros, já que a China é grande cliente do setor agropecuário nacional, o que explica a aproximação com os outros membros? O que faz o Brasil se aproximar de países do BRICS como a ditadura teocrática iraniana, ainda mais em um momento de guerra no Oriente Médio? O mesmo pode se dizer da aproximação com a Rússia, que empreende uma invasão ao território ucraniano – e que com certeza vai procurar legitimar a sua invasão na cúpula do BRICS. Fica então a esperança de que a Cúpula do BRICS em Kazan não seja um momento de aprendizado para a delegação do Brasil, e sim um de reflexão sobre que caminho a diplomacia brasileira quer trilhar.
David Aulicino Zagury, graduado e pós-graduado em Relações Internacionais pela George Washington University, em Washington D.C, especialista nas áreas de política externa americana, América Latina, Oriente Médio e cultura, atua na área de pesquisa acadêmica e consultoria.
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