O Projeto de Lei 3117/24 flexibiliza as regras das licitações públicas para agilizar e dar segurança jurídica aos gestores no enfrentamento de calamidades públicas. O texto, em larga medida, reproduz a Medida Provisória 1221/24 do Poder Executivo, editada em apoio ao Rio Grande do Sul, depois de suas enchentes. Sua justificativa é de que é preciso uma legislação nacional para calamidades públicas como as ocorridas recentemente no Pantanal e na Amazônia.
Dentre outras medidas, o projeto dispensa a elaboração de estudos técnicos preliminares; admite a apresentação simplificada de anteprojeto ou projeto básico, reduz pela metade os prazos mínimos para a apresentação de propostas e dos lances: os contratos firmados terão duração de um ano, prorrogados por igual período; suspende a exigência de documentos relacionados às regularidades fiscal e econômico-financeira em locais com poucos fornecedores de bens ou serviços; permite ajustes no contrato inicial que elevem o seu valor em até 50%, caso necessário.
Os órgãos de controle e de fiscalização interna e externa, inclusive os Tribunais de Contas devem estar atentos para que a calamidade não seja uma simples desculpa para o descumprimento da boa gestão pública
Ainda de acordo com o Projeto de Lei 3117/24, as regras serão adotadas após o governador ou o presidente da república reconhecerem o estado de calamidade do território. Os contratos firmados deverão ser disponibilizados no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) com informações e detalhes sobre as empresas contratadas, valor dos contratos e objeto das contratações.
A licitação – como todos sabemos – é um processo administrativo que tem por objetivo produzir a escolha da proposta mais vantajosa para contratar com a administração. Normalmente, o processo licitatório é estruturado em fases até a escolha do licitante vencedor. Cada fase está vocacionada a finalidades específicas, a avaliação das propostas ou lances, a habilitação dos licitantes, o julgamento dos recursos. Por isso se diz que o processo de licitação é instrumental: ele não é um fim em si mesmo, mas sim o instrumento posto à disposição da administração pública, que tem o dever de geri-lo de forma eficiente, de modo a atingir o objetivo – a contratação – com os menores custos possíveis, mais as cautelas necessárias.
Ainda que estejamos diante de uma emergência ou de calamidade é necessário que a administração pública respeite e atenda aos princípios da legalidade, economicidade, moralidade, publicidade e transparência nas contratações que realiza. Isso sem olvidar da razoabilidade e proporcionalidade, que são parâmetros para o controle de leis e atos administrativos concretos.
Recorde-se que já é tradição no direito brasileiro enquadrar a calamidade pública como hipótese autorizativa para a dispensa de licitações desde o Decreto-Lei 200/1967 (art. 126, § 2º, a). Essa permissão para a contratação direta foi reproduzida no Decreto Lei 2.300/1986 (art. 22, III), na Lei 8.666/1993 (art. 24, IV) e, atualmente, está também replicada na Lei 14.133/2021 (art. 75, VIII). Parece importante ainda que as empresas que pretendam contratar com a administração pública sejam idôneas, regulares em termos amplos e que tenham suficientes condições (capacidades) econômico-financeiras e técnicas para os compromissos a serem potencialmente assumidos perante o Estado.
Evidentemente, os preços praticados e as escolhas das contratadas poderão ser sindicados ainda que em emergências ou calamidade públicas, pois não há circunstância que dispense o accountability decorrente do Estado Republicano e de Direito. E, por esta razão, entendemos que os órgãos de controle e de fiscalização interna e externa, inclusive os Tribunais de Contas devem estar atentos a essas compras exercendo plenamente as suas competências para que a calamidade não seja uma simples desculpa para o descumprimento da boa gestão pública.
Marcelo Figueiredo, advogado e consultor jurídico, é professor associado de Direito Constitucional e Direito Constitucional Comparado da Faculdade de Direito da PUC-SP.
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