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Censurar a Bíblia nas escolas é uma inquisição inútil

Mesmo que se tente atalhar a ação evangelizadora na escola e depois revistar as mochilas, o que fará a nova inquisição laicista para impedir aos alunos o acesso à Bíblia, visto que ela está dispersa em toda parte? (Foto: Rod Long / Unsplash)

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No Concílio de Roma, em 382, o cânone da Bíblia foi constituído de 73 livros pertencentes a diversos gêneros literários: narrativas históricas, atas reais, leis, novelas, poesias, provérbios, profecias, evangelhos e cartas. Na verdade, a Bíblia não é um livro apenas, mas uma coletânea de textos antigos, escritos originalmente em hebraico e grego, que foram agrupados não cronologicamente, mas a partir de uma seleção simbólica que confere ao conjunto um caráter ordenado para a compreensão.

Mais do que um documento considerado de inspiração divina tanto na tradição judaica quanto cristã, a Bíblia é a principal obra literária da humanidade, que revela não só conteúdo teológico, mas oferece ao homem de todos os tempos uma perspectiva sobre si próprio. A Bíblia possui, por isso, um caráter fundante na cultura que se desenvolveu no Ocidente. Isso é evidente porque ela foi o referencial teórico de quase toda a produção artística da Antiguidade Tardia ao Renascimento – a inspiração escrita de Leonardo da Vinci, Michelangelo e Rafael Sanzio. Trata-se de uma fonte alusiva que ajudou a consolidar as diversas esferas da civilização, desde a Educação ao Direito, não só em termos de fé, mas de solidariedade humana, organização urbana e justiça social, como um código de ética válido universalmente.

Mesmo que se tente atalhar a ação evangelizadora na escola e depois revistar as mochilas, o que fará a nova inquisição laicista para impedir aos alunos o acesso à Bíblia, visto que ela está dispersa em toda parte?

Como Ilíada, Odisseia, A República, A Divina Comédia, Dom Quixote, Os Miseráveis, Dom Casmurro, a Bíblia é uma obra imprescindível na formação literária de qualquer pessoa. Mesmo na época em que a maioria da sociedade era analfabeta, a Igreja se serviu da arte como recurso pedagógico para ensinar as histórias bíblicas, enchendo muros e vitrais com desenhos multicoloridos, enquanto monges copiavam manualmente as letras que hoje, graças ao avanço tecnológico, temos acesso com tanta facilidade. No entanto, uma opinião isolada em Curitiba sugere que a admissão dessa obra nas escolas pode causar incômodo, ferir a sagrada laicidade do Estado e até prejudicar a educação.

É estranho ler um requerimento de pedido à Câmara de Vereadores da cidade de Curitiba (PR) para que solicite à Secretaria Municipal de Educação informação se houve análise sobre “risco pedagógico e social” da distribuição do Novo Testamento nas escolas públicas – como se em qualquer biblioteca ou na prateleira de casa não houvesse um exemplar alcançável. Além disso, como é possível que o texto que serviu por dois milênios para fundar os princípios morais da sociedade, de repente, torne-se pernicioso à multiplicidade do ambiente escolar e tenha de ser evitado por sugerir favorecimento confessional?

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Mesmo que se tente atalhar a ação evangelizadora na escola e depois revistar as mochilas, o que fará a nova inquisição laicista para impedir aos alunos o acesso à Bíblia, visto que ela está dispersa em toda parte? Queimar os Faróis do Saber como fizeram com a Biblioteca de Alexandria? Impor uma fogueira de livros como em Berlim, em maio de 1933? Proibição estrita como na Coreia do Norte? Um Index Librorum Prohibitorum contemporâneo?... Tarde para qualquer tentativa. A Bíblia é o livro mais impresso e vendido no mundo, traduzido em praticamente todas as línguas. Se possuísse um caráter de periculosidade, não teria dado uma lição de sobrevivência por tantos séculos.

Aos iletrados voluntariamente, resta a possibilidade de admirar a beleza da arte para se convencer do bem que deste livro reverbera na representação de uma jovem mãe, constrangida por uma gravidez solitária, portando com ternura seu divino filho no colo; um galileu repartindo o pão com os pobres; um samaritano usando de misericórdia com um desconhecido; um pai paciente acolhendo de volta seu caçula rebelde. Aos que parecem ter preguiça de ler ou julgam o texto por preconceito intencional, vale o enunciado de um Homem injustiçado que resumiu as milhares de páginas da Escritura no amor a Deus e ao próximo. Há algum perigo nisso?

Khae Lhucas Ferreira Pereira é doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná e Sorbonne Université de Paris.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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