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Justiça climática combate desigualdade

COP 30 ocorre em novembro em Belém (PA)
Entre 11 e 22 de novembro, Belém (PA) recebe líderes mundiais, cientistas, organizações e sociedade civil para debater ações voltadas ao enfrentamento das mudanças climáticas. (Foto: Raphael Luz/Agência Pará)

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Não é apenas uma questão ambiental: a crise climática é também um fenômeno profundamente humano e desigual. Embora todos sejam afetados pelas mudanças do clima, seus impactos recaem de forma desproporcional sobre grupos historicamente marginalizados – mulheres, pessoas negras, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, idosos, moradores de periferias e populações com deficiência. A desigualdade estrutural amplifica a vulnerabilidade desses grupos diante de secas, enchentes, insegurança alimentar e deslocamentos forçados.

Para romper com a ideia de que os efeitos do aquecimento global são neutros, surge o conceito de justiça climática. Ele propõe que a responsabilidade pelo enfrentamento da crise seja diferenciada conforme a contribuição histórica e a capacidade de resposta de cada país ou agente econômico. É injusto que aqueles que menos contribuíram para o desequilíbrio do clima – sobretudo no Sul Global – arquem com o peso maior de suas consequências, enquanto as nações e empresas mais ricas continuam a lucrar.

A justiça climática é, em última análise, a construção de uma comunidade de bem viver, em que o acesso à água, à saúde e às florestas se dá com respeito mútuo entre seres humanos e natureza

A discussão desse tema conecta-se diretamente à interseccionalidade, abordagem que analisa como diferentes formas de opressão – de gênero, raça, classe, etnia, idade ou orientação sexual – se cruzam e se reforçam mutuamente. Refletir sobre as mudanças do clima a partir dessa lente é compreender que o impacto ambiental é também social e político: o lugar onde se nasce, o corpo que se habita e as oportunidades que se têm determinam o nível de exposição e a capacidade de adaptação.

O racismo ambiental é expressão concreta dessa interseção. Políticas públicas e práticas econômicas frequentemente transferem os custos da degradação para comunidades racializadas, enquanto os benefícios se concentram entre grupos privilegiados. De acordo com o Censo de 2022, sete em cada dez moradores de áreas precarizadas do Brasil são negros, pardos ou indígenas – e a maioria é de mulheres. São essas mesmas pessoas que morrem quinze vezes mais em eventos climáticos extremos, conforme dados do IPCC.

As mulheres, em especial, suportam a maior parte dos efeitos da crise no clima. A ONU estima que elas representem 70% das pessoas em situação de pobreza e 80% dos deslocados por desastres ambientais. A falta de água, resultado do aquecimento global, obriga-as a longos deslocamentos diários, expondo-as à violência e retirando meninas da escola.

Em contextos de emergência, aumentam a violência doméstica, os maridos forçados, o tráfico de pessoas e a exploração sexual. Apesar disso, as mulheres seguem sub-representadas nas instâncias de poder – na COP29, apenas 37,8% dos delegados eram mulheres, e somente 32,3% chefiavam delegações. Mas são elas também as primeiras a propor soluções, tanto para conter os efeitos das mudanças quanto para implementar medidas locais de mitigação e adaptação. Experiências comunitárias lideradas por mulheres têm mostrado caminhos concretos de restauração ambiental, segurança alimentar e reconstrução de territórios atingidos por eventos do clima extremos.

VEJA TAMBÉM:

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, na Opinião Consultiva 32/2025, reforçou o caráter urgente e vinculante da governança climática. O tribunal reconheceu o clima estável como direito humano autônomo, estabeleceu o dever de não causar danos irreversíveis ao meio ambiente como norma de jus cogens e impôs aos Estados obrigações de proteger pessoas defensoras dos direitos humanos ambientais. Também fixou padrões de diligência reforçada para mitigação e adaptação, baseados na ciência, na participação popular e na transparência. Essa decisão tem efeito vinculante para o Brasil e deve orientar toda a política climática nacional e internacional.

Em novembro de 2025, o Brasil sediará, em Belém do Pará, a COP30 – Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. Será a primeira COP realizada na Amazônia e uma oportunidade histórica para o país demonstrar liderança e coerência entre discurso e prática. As discussões em Belém precisam ocorrer à luz da decisão da Corte Interamericana, reconhecendo que o enfrentamento da crise climática é também um dever jurídico de proteção aos direitos humanos e de promoção da igualdade.

Fica claro que a justiça climática demanda uma transformação estrutural. Investir em setores verdes é insuficiente. É necessário reduzir desigualdades de gênero, raça e idade, nomear e combater o racismo ambiental, ampliar a participação feminina e popular nas decisões e garantir proteção social e reassentamento digno às populações atingidas. A jornada para um futuro sustentável passa pelo reconhecimento de que equidade social e equilíbrio climático são dimensões inseparáveis.

A justiça climática é, em última análise, a construção de uma comunidade de bem viver, em que o acesso à água, à saúde e às florestas se dá com respeito mútuo entre seres humanos e natureza – como ensinou Mãe Donana, do Quilombo Quingoma: “A natureza é como uma mãe defendendo seus filhos, e sendo defendida por eles.” Essa visão, ancestral e inclusiva, traduz a verdadeira essência de uma justiça capaz de salvar não apenas o planeta, mas também a dignidade humana.

Symara Motter é promotora de Justiça do Ministério Público do Paraná.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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