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A trajetória histórica dos ideais da Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade – revela um movimento contínuo de rupturas e contradições que, longe de conduzir ao aperfeiçoamento humano, provocou uma transformação civilizacional profunda e desagregadora. Esses três princípios, concebidos originalmente como complementares, foram aplicados de forma sucessiva e absoluta, dando origem a sistemas políticos e filosóficos que se sucederam como reações uns aos outros e que, cumulativamente, corroeram os fundamentos espirituais, morais e culturais da civilização cristã ocidental.
O liberalismo, centrado no ideal da liberdade, surgiu como resposta ao absolutismo e aos privilégios aristocráticos, exaltando a autonomia individual, a propriedade privada e o livre mercado. Herdeiro do Iluminismo e do racionalismo moderno, colocou a razão autônoma acima da fé e da Tradição, dissolvendo a unidade orgânica da sociedade cristã. Ao deslocar a autoridade espiritual da Igreja para o plano puramente humano do contrato social, inaugurou o processo de secularização que retirou da cultura ocidental seu eixo metafísico e transcendente. Embora tenha promovido avanços institucionais e econômicos, sua ênfase na liberdade econômica sem freios gerou desigualdades profundas e as mazelas da Revolução Industrial, abrindo caminho para movimentos de contestação.
Ao tentar realizar plenamente os três ideais da Revolução Francesa, o homem moderno inverteu-lhes o sentido – transformou a liberdade em relativismo, a igualdade em nivelamento e a fraternidade em dissolução
O socialismo e, em sua forma extrema, o comunismo, apresentaram-se como reação a essas injustiças, elevando a igualdade material ao status de valor supremo. A proposta de suprimir a propriedade privada e subordinar a economia ao controle estatal buscava corrigir as distorções do capitalismo liberal. Contudo, ao substituir a liberdade pela igualdade, o marxismo radicalizou a ruptura com o transcendente e transformou o homem em mero produto das estruturas econômicas. A religião, declarada “ópio do povo”, passou a ser vista como obstáculo à emancipação. Essa ofensiva espiritual resultou na descristianização das consciências e no esvaziamento simbólico da cultura europeia que, destituída de fé e de raízes, converteu-se em um corpo sem alma – materialmente avançado, mas espiritualmente desorientado.
No terceiro estágio, o ideal de fraternidade ressurge sob a forma de uma Nova Ordem Mundial, inspirada nas formulações da Escola de Frankfurt e nas teorias críticas do século XX. Diante do fracasso da revolução proletária, a luta marxista foi transposta da esfera econômica para o domínio cultural. Pensadores como Herbert Marcuse propuseram substituir a luta de classes pela luta das minorias raciais, sexuais e de gênero, inaugurando o paradigma do identitarismo. A noção de “tolerância”, redefinida como “tolerância repressiva”, deixou de significar abertura ao debate e converteu-se em instrumento de silenciamento das tradições ocidentais. Assim, a fraternidade foi pervertida em um ideal fragmentário e ideológico que não visa integrar, mas dissolver as identidades nacionais, morais e religiosas sob o pretexto de promover inclusão, diversidade e sustentabilidade.
Essa tentativa de síntese universal, expressa na atuação de organismos internacionais e na imposição de padrões globais de conduta, gera novas contradições. A centralização de decisões em instâncias supranacionais provoca a erosão da soberania nacional, a fragilização da legitimidade democrática e a difusão de um neoimperialismo cultural, no qual valores ocidentais e pós-modernos são impostos sob o pretexto de universalidade. Além disso, a aplicação coercitiva de conceitos como “diversidade” e “tolerância” pode restringir liberdades fundamentais, como a de consciência e expressão, subordinando o indivíduo a códigos morais impostos por elites globais.
O resultado desse processo histórico é um vazio espiritual e cultural. Ao renunciar à sua herança cristã e às suas referências transcendentais, o Ocidente enfraqueceu sua coesão interna e sua capacidade de autodefesa. Uma Europa pós-cristã, culpabilizada e desarmada moralmente, tornou-se incapaz de sustentar sua própria identidade sem ser acusada de intolerância. Nesse contexto, o Islã, por sua força espiritual e unidade comunitária, surge como elemento de substituição, ocupando o espaço deixado por uma civilização que perdeu a confiança em si mesma. A tolerância ilimitada, transformada em dogma, converte-se em instrumento de autodestruição.
Conclui-se, portanto, que a Revolução Francesa não foi um ponto de partida para a emancipação humana, mas o início de um processo revolucionário de longa duração. A liberdade liberal derrubou a autoridade da Tradição e da fé; a igualdade marxista suprimiu o espírito e reduziu o homem à matéria; e a fraternidade progressista, deformada em ideologia identitária e globalista, fragmentou o que restava da unidade cultural. A história moderna revela, assim, que os ideais revolucionários, quando aplicados de forma isolada e absoluta, se transformam em forças autodestrutivas.
Sob essa perspectiva, o percurso do Ocidente não representa uma ascensão à justiça ou ao progresso, mas a consumação de um movimento de autonegação civilizacional. Ao tentar realizar plenamente os três ideais da Revolução Francesa, o homem moderno inverteu-lhes o sentido – transformou a liberdade em relativismo, a igualdade em nivelamento e a fraternidade em dissolução. Com isso, completou a sua própria obra de destruição, substituindo a ordem fundada no transcendente por uma utopia imanente que, em vez de redimir o homem, o despojou de sua alma e de seu destino espiritual.
Márcio Luís Chila Freyesleben é jurista e escritor.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



