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Tradição ou tradições? Um cavalo de Troia no conservadorismo político

(Foto: AFP)

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Um despertar conservador parece evidente na política de vários países nas últimas décadas. Desde o fenômeno Trump, em 2016, Bolsonaro, em 2018, além do Brexit, acenderam o alerta de toda a esquerda global para uma “ameaça” à sua hegemonia. Isso ficou evidente de maneira quase caricatural durante a pandemia de 2020 e as eleições americanas daquele mesmo ano, procedendo toda a agenda controladora bilionária que une Wall Street à utopia de uma Nova Ordem Mundial. Isso, porém, parece enfrentar um declínio ainda sutil a partir de uma tomada de consciência que aparece sob a forma de uma ascensão conservadora.

A razão psicossocial desta nova onda conservadora no mundo e na política é clara e parece representar uma busca natural por um conceito de ordem e hierarquia perdido desde o advento da sociedade moderna, fruto da utopia liberal. Mas nem tudo o que se apresenta como antídoto à trágica modernidade pode ser visto como autêntico conservadorismo, inclusive na política, tampouco como alternativa à perda da noção de ordem espiritual do mundo moderno.

Defender a Igreja Católica, nestes nossos tempos cada vez mais confusos, significa atrair para si não apenas o ostracismo, mas o ódio dos próprios irmãos

Houve na própria modernidade, tentativas de se substituir a autoridade religiosa para restaurar um senso espiritual, seja por meio dos espiritualismos subjetivistas da New Age, seja pela afirmação de um projeto tecnocrático e transumanista, fruto dos piores devaneios megalômanos que a humanidade já produziu. Naufragadas pela própria insuficiência, porém, essas iniciativas reaparecem de tempos em tempos com nomes e cores diversas.

Agora é a vez da Rússia, China e seus aliados que incluem dramaticamente o Brasil, a oferecerem uma ordem alternativa que promete “resgatar o mundo” do caos e trazer de volta as “tradições”. “Se Deus não existe, tudo é permitido”, disse um russo pós-moderno bastante popular. “Quando não se crê em Deus, acredita-se em qualquer coisa”, disse um intelectual católico também popular. Ambas as máximas dizem respeito ao problema do indiferentismo e de como não há vazio de poder, seja temporal ou espiritual. “A Rússia espalhará seus erros pelo mundo”. Essa todos sabem de quem é.

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Dizendo-se contra a Agenda 2030, proposta pela elite econômica global, muitos têm apostado em um “despertar” da crítica à modernidade. Trata-se de um tradicionalismo que tem como ícones nomes como o popular conservador Jordan Peterson, cineastas como Mel Gibson, entre outros. Observa-se um aparente retorno a um genérico “espírito”, fruto de um anseio natural por uma ordem perdida e fracassada. As “tradições”, ditas num imperativo generalista e indiferente, revela a assinatura do seu autor.

Contra inimigos tão grandes como as corporações, instituições internacionais como a OMS e ONU, bilionários filantropos como George Soros, todos descritos comumente na retórica apocalíptica que a internet popularizou, a dialética da conciliação com os “inimigos dos meus inimigos” se fortaleceu como única forma possível de resistência. Não por acaso, movimentos como o QAnon podem ser facilmente associados à direita e, ao mesmo tempo, à propaganda russa vendida como antissistêmica.

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Onde quer que os conservadores, sejam da política ou não, tenham espaço para falar, surge não mais a defesa de uma Tradição Católica, mas a da liberdade para que as várias tradições possam ter seu espaço. Eis aí a diferença abissal entre a Tradição e as tradições, vistas como preferíveis à universalidade do globalismo ocidental. Essa crítica aproveita o discurso anticolonial e antiocidental, cuja principal característica é a de ser antiuniversal, isto é, sutilmente anticatólico. A direita mundial que se desenvolve a cada dia às voltas com movimentos antissemitas, russófilos e esotérico-tradicionais, tem tudo para se tornar a grande força política dos próximos anos. A má notícia é que a grande perdedora dessa conjuntura será a Tradição da Igreja Católica, defendida apenas de maneira cismática, sedevacantista, ou assumidamente revolucionária.

A ideia de uma defesa das tradições inclui crenças e mitos neopagãos que há décadas se organizam em movimentos políticos e culturais. Da mesma forma, os próprios conservadores católicos, sedentos por um “disfarce” ou discrição humanista de sua fé, parecem prontos a colaborar com o indiferentismo e o ecumenismo, cuja vitalidade tem sido reavivada sob a égide do “acordão”, da conciliação política que segundo Paulo Mercadante, faz parte da consciência conservadora do brasileiro.

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Esses conservadores, quando não estão infectados pelo vírus da russofilia militante ou do esoterismo tradicionalista, flertam perigosamente com um humanismo que produziu os piores frutos da modernidade: o indiferentismo religioso já reinante até mesmo nos redutos mais tradicionais. Nele, não se pode afirmar nenhuma autoridade espiritual que não seja a de uma espécie de “energia” libertária e igualitária emanada de uma divindade gnóstica e sem nome, sem Igreja e sem hierarquia.

Defender a Igreja Católica, nestes nossos tempos cada vez mais confusos, significa atrair para si não apenas o ostracismo, mas o ódio dos próprios irmãos que desejam beneficiar-se dos espaços conquistados e de um discurso fácil justificado por uma pretensa evangelização humanitária e inclusiva. No entanto, o discurso cristão por excelência vai perdendo espaço, muito embora os apóstolos do “acordão” não o percebam. Afinal, quando afirmações como “não há salvação fora da Igreja” começam a ser rejeitadas pelos próprios católicos, o que falta para instaurar uma verdadeira perseguição interna, fruto do desejo pelos reinos deste mundo? Defender genericamente as “tradições” será a nova onda conservadora na política, diante da qual serão perseguidos e calados todos os que defendam uma Tradição no singular.

Cristian Derosa é jornalista e escritor. É autor do livro “O Sol Negro da Rússia: raízes ocultistas do eurasianismo”.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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