Uma das perguntas que mais tenho recebido é: estamos, de fato, assistindo a uma decadência cultural no Brasil? Nossa cultura está decaindo? Trata-se de uma reflexão que exige cuidado e uma avaliação profunda, partindo para um quadro maior da questão, até para não cometer imprecisões ou mesmo injustiças.
Porém, antes de chegar ao nosso país, precisamos dar um passo atrás e avaliar a estrutura da cultura como um todo. Em “Il Gattopardo”, do diretor Luchino Visconti e que está disponível na plataforma de streaming Lumine, é abordada a revolução republicana ocorrida na Itália. E lembro de uma frase marcante desse filme: “Para que muitas coisas mudem, é necessário que poucas fiquem no mesmo lugar de sempre”.
O que isso quer dizer? A exemplo do que houve na Itália, uma transformação social e civilizacional acontece de forma abrupta e radical. Mas, mesmo assim, algumas castas e classes precisam ser intocáveis. Em outras palavras: existe uma estrutura hierárquica, tanto na sociedade como na cultura, que nunca muda. No entanto, os elementos que a compõem mudam. Por isso, a cultura está decaindo sob um aspecto; mas, sob outro, sempre persistirá uma ordem. A aparente decadência resulta de algum componente mal posicionado dentro dessa hierarquia.
Para exemplificar, de maneira bem prática: o guitarrista Omar Rodríguez-López, da banda alternativa The Mars Volta, um grupo musical bastante alternativo e de sonoridade obscura e arrojada, é muito amigo de outro guitarrista, John Frusciante, do Red Hot Chilli Peppers, que é tida como uma das bandas pop mais importantes de todos os tempos. Frusciante se inspira em músicos de rock mais clássico, como Jimi Hendrix e Eric Clapton. Mas quem ouve os álbuns do Red Hot percebe, em muitos riffs e melodias, a influência que vem de fontes mais alternativas como Omar Rodriguez. Ou seja, uma das bandas mais pop do mundo tem sua sonoridade inspirada em um grupo muito menos conhecido, mas que exerce indiretamente muito mais influência.
Isso, na verdade, não é incomum: quem produz para um público mais amplo precisa consumir o que é mais arrojado. O que a cultura pop faz é pegar uma fonte mais complexa, simplificá-la, massificando o produto ao torná-lo mais palatável. E, nesse processo, necessariamente, é preciso empobrecer uma música ou uma peça de teatro para que fiquem atrativas para um maior número de pessoas. Sempre existe um artista, intelectual ou marca com uma obra mais sofisticada e profunda que influencia as outras camadas da sociedade e toda a cadeia cultural.
Vamos a mais um exemplo bem concreto? Os desfiles de moda de grifes como Louis Vuitton e Prada. Principalmente dos meios conservadores, ouvimos críticas apontando que tudo aquilo mostra que a cultura está decaindo e que ninguém usará aquele tipo de roupa. De fato, nada daquilo foi pensado para ser massificado: ali vemos experimentos de linguagem que, em maior ou menor grau, serão apropriados por outros agentes da indústria. Então, possivelmente, dois anos após esses desfiles, veremos alguns de seus elementos incorporados a roupas vendidas em uma loja de shopping próxima a nossas casas. E muita gente que criticou, lá atrás, vai acabar vestindo essas peças sem saber de onde vieram — e continuarão sem compreender o papel que esses desfiles exercem na cultura.
Nessa caminhada de massificação, portanto, sempre vai haver um certo empobrecimento, com a percepção de que há uma decadência em curso. É — e será sempre assim —, porque faz parte da estrutura da realidade. Claro, existem radicalismos na expressão estética que fazem parte desse processo de experimentação. Alguns são bons, outros ruins. Cabe, a cada um de nós, avaliar e ponderar.
Artistas, produtores, agentes culturais e empreendedores têm o gigantesco desafio de, ao tentar massificar seus produtos, não idiotizar a população. Trata-se de uma missão que envolve responsabilidade, ainda mais considerando que caberá a algumas pessoas exercer o papel de referência para os demais. Um processo de longo prazo, que se desdobra para outras camadas da sociedade.
Nessa jornada, é comum que artistas e intelectuais sofram um tensionamento, motivado pela dicotomia entre a essência daquilo a que nos propomos e a necessidade de massificar o que fazemos. Às vezes, um sentimento de traição. E se isso de fato acontecer, aí sim: nós estaremos contribuindo ativamente para esse processo de decadência cultural.
Antes de mais nada, precisamos entender como tudo está hierarquizado, de modo que possamos fazer um juízo de valor mais preciso, e não com histeria — que é fruto de uma falta de percepção da ordem. Quando ficamos histéricos, nos sentimos perdidos e, consequentemente, desesperados. A cultura parece estar decaindo, e pensamos que o fim da civilização se aproxima. E isso não leva a lugar nenhum. Apenas a partir do momento que compreendermos nosso espaço dentro da hierarquia das influências é que conseguiremos gerar algum impacto positivo na sociedade.
Matheus Bazzo é fundador da Lumine e da Minha Biblioteca Católica.
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