Conversava com uma jornalista antes da gravação de um programa televisivo, quando ela disse que “a ordem do dia é a relativização cultural, porque todo novo tema recebe, em seu lançamento, o código genético da indeterminação”. “Então”, respondi-lhe, “um sujeito minimamente convicto de suas ideias sobre o mesmo tema pode ser tachado de antidemocrata ou intolerante? Mas as ideias dele, no choque com esse espírito difuso, não seriam bem-vindas, em nome da tolerância e da democracia, por mais estapafúrdias ou verdadeiras que fossem?”.
Sobreveio um longo silêncio no outro lado dessa interlocução. Ao menos creio que a jornalista deu conta de que verdade e cultura podem habitar, sem brigas, o mesmo período gramatical e que podem haver alguns elementos objetivos que ultrapassem as próprias perspectivas individuais, em prol de uma reflexão humana sobre cultura minimamente unitária e consistente.
Eis o ponto. A relativização cultural impede a análise dos diversos discursos, sobretudo os antagônicos, até o ponto em que sejam exteriorizados seus limites, fragilidades e incoerências, à luz dessa mesma reflexão humana. Em outras palavras, a relação entre cultura e verdade seria como o vínculo do homem com o sabonete da pia, depois de usado o mictório público: repelem-se e não há perigo de melhora.
A cultura moderna está impregnada de certa consciência desencantada de estar fora do território do ideal e primordial na leitura que faz da prosa do mundo e em sua rede de discordâncias irreconciliáveis. Calha aqui a observação de Marcel Proust – todo paraíso é um paraíso perdido. O homem atual é o protagonista passivo de uma cisão que o aparta da totalidade da vida e que o divide inclusive internamente.
As contradições do processo histórico em que vivemos, oscilante entre emancipação, violência, liberdade de onipotência, desenraizamento e solidão, parecem gritar ao indivíduo que, na existência concreta, não há mais espaço para o recurso a valores dotados de validade universal e que sejam aptos a justificar opções definitivas.
Parece que opções mínima e racionalmente convictas apresentam o risco de provocar, na cabeça de quem fez outras, uma espécie de consciência da queixa: a posição alheia é retrógrada, tradicional, conservadora, religiosa, antidemocrata, patriarcal, opressora, branca, homofóbica, eurocêntrica e assim por diante.
A relativização cultural – no fundo, uma relativização ética – apresenta-se, para muitos, como a única possibilidade de superação desse “mal radical” que implicam umas poucas e perenes convicções morais absolutas, a única forma de abandono de uma certa “consciência de culpa” (Ratzinger) dos defensores dessa relativização, a fim de se alcançar um novo e presumido estado de inocência civilizacional.
Reduzido ao mais puro relativismo, tudo marchará para o niilismo e, depois, para o “economicismo existencial”: liberados os valores de seu sentido mais radical e profundo, todos se farão equivalentes e intercambiáveis. Cada valor converte-se em qualquer outro, tudo se converte em moeda de troca no mercado dos valores e resta cancelado todo preço de uso decorrente de alguma peculiaridade inconfundível ou insubstituível.
Logo se percebe que o apreço da pós-modernidade pela diversidade, no seio da relativização cultural, é bem falso. Se as portas estão escancaradas para a escolha de qualquer tipo de postura cultural, é porque, no final das contas, tudo dá no mesmo. Essa apoteose do “politeísmo de valores” (Weber), disfarçada de diversidade cultural, irá nos conduzir para a despersonalização dos indivíduos e, como efeito, para o arrebatamento de sua dignidade efetiva.
Privados de um “deus que nos salve dessa crise cultural” (Heidegger) e com os valores enfrentando-se uns aos outros irreconciliavelmente, como deuses de um novo Olimpo desencantado, creio que seria o momento de resgate daquilo que poderia nos tirar desse mundo de perda de sentido da relativização cultural: a busca da verdade.
Mas uma busca apaixonada e não meramente idealista, que se dá por meio do estudo, da aprendizagem e da disputa racional, porque a paixão, se, por um lado, tem algo de ágape, o amor de benevolência, por outro, tem muito mais de eros, o desejo de união possessiva, desencadeador de uma chama que queima e consome, a única forma de superar essa luta cega de forças que domina uma cultura relativizada, uma cultura sem alma e sem coração.
André Gonçalves Fernandes, post Ph.D., é juiz de direito, professor de Filosofia da Academia Atlântico, pesquisador em filosofia da educação pela Unicamp e membro da Academia Campinense de Letras.
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