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Neste sábado, 6, a tradição cristã celebra São Nicolau, figura histórica que atravessou os séculos por sua coragem, generosidade e profunda fé, mas que, paradoxalmente, acabou reduzida pelo imaginário moderno a um mascote natalino caricaturado e comercial. A data não é apenas uma lembrança no calendário litúrgico; é um espelho colocado diante do nosso tempo. O que perdemos quando transformamos santos em personagens e o Natal em vitrine? Que sentido escapa quando substituímos o mistério da fé pelo marketing?
O verdadeiro Nicolau, bispo de Mira, viveu no século IV. Não era um símbolo decorativo, mas um homem disposto a arriscar tudo por amor a Cristo e ao próximo. A tradição preservou histórias de caridade radical. Para cristãos e não cristãos, a trajetória desse bispo revela valores universais: compaixão, firmeza moral e generosidade discreta. É essa luz humana e espiritual que ajudou, por séculos, a moldar o sentido do Natal como tempo de bondade e reconciliação.
Mas o contraste entre o São Nicolau da tradição e o “Papai Noel” globalizado é evidente. Com o avanço do marketing e da cultura consumista, dezembro tornou-se uma temporada de anúncios, filas e vitrines, não de oração, silêncio ou encontro. Não se trata de uma crítica ao comércio - o sustento de muitas famílias depende dele - mas de reconhecer que o brilho artificial acabou ofuscando o significado profundo da data. A caridade silenciosa cedeu lugar ao consumo frenético; a esperança encarnada tornou-se pano de fundo para campanhas publicitárias.
O Natal, remodelado pelo mercado e por ideologias que buscaram esvaziar a dimensão cristã, corre o risco de se tornar apenas um feriado “aconchegante”. Mas o Natal nunca foi inofensivo. É a memória de um Deus vivo, de uma fé que exige coragem, de uma caridade que pede verdade e sacrifício. É um convite, suave e radical, à conversão interior.
Um santo moldado pela caridade
Nicolau nasceu no século III em Patara, na Lícia, atual Turquia. Criado em uma família rica e cristã, destacou-se desde cedo pela vida religiosa disciplinada. Órfão ainda jovem, usou toda a herança para ajudar pobres e enfermos, vivendo o Evangelho com uma literalidade que muitos hoje considerariam impraticável.
Tornou-se bispo de Mira, enfrentou perseguições sob Diocleciano, foi preso, exilado e, após ser libertado, participou do Concílio de Niceia em 325. Morreu em 343, já venerado como protetor dos mais fracos.
Diversas histórias contribuíram para sua fama. A mais conhecida é a das três jovens que, sem dote, corriam risco de cair na prostituição. Nicolau lançou secretamente bolsas de moedas pela janela da casa delas, à noite, salvando-as e preservando o anonimato. Também ganhou notoriedade a narrativa medieval dos três estudantes de teologia assassinados por um estalajadeiro. O bispo, informado em sonho, teria rezado sobre eles e os ressuscitado, levando o criminoso ao arrependimento.
Relatos semelhantes, como o do jovem Basílio, sequestrado por piratas e libertado de modo considerado milagroso, ajudaram a consolidar Nicolau como padroeiro de crianças e jovens. Após sua morte, seu túmulo tornou-se centro de peregrinação. Fiéis afirmavam que um líquido chamado “maná de São Nicolau” escorria das relíquias e era fonte de milagres.
No século XI, com a invasão turca, suas relíquias foram levadas para Bari, no sul da Itália, onde permanecem até hoje. A transferência ampliou sua devoção por toda a Europa, originando o título “São Nicolau de Bari”.
Da tradição ao imaginário moderno
Nos países germânicos e nos Países Baixos, a festa de “Sint Nikolaas” evoluiu para um costume infantil: crianças deixavam sapatos perto da lareira esperando encontrá-los cheios de doces e presentes - um eco direto da generosidade do bispo. A tradição atravessou o Atlântico, misturou-se à cultura norte-americana e se transformou no “Santa Claus”, já distante de sua raiz espiritual.
A figura moderna, embora simpática, encobre uma história muito mais profunda: a de um santo que usou sua vida para defender a fé, proteger os vulneráveis e lembrar que o amor concreto transforma.
Neste ano, celebrar São Nicolau significa resgatar o fio espiritual que dá sentido ao Natal. Significa recuperar o gesto discreto, a caridade silenciosa e a coragem de crer. E lembrar, enfim, que antes de ser festa, o Natal é revelação da esperança que nos alcança quando nos encontramos com o Menino Deus na manjedoura.
Aline Moreira de Menezes Lincon é editora de Opinião na Gazeta do Povo.



