O resultado da eleição para Presidência da República não deixa nenhuma dúvida de que os maus políticos e os maus governantes dividiram o país. O candidato eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, recebeu 60,346 milhões de votos (50,90% dos votos válidos), enquanto Jair Bolsonaro obteve 58,206 milhões de votos (49,10% dos votos válidos). A menor diferença da história, escancarando a divisão do país.
A abstenção também foi menor nesse pleito (32,20 milhões de eleitores num universo de 156,45 milhões de cidadãos aptos a votar), assim como o número de votos brancos e nulos, que somaram 4,59%. Ou seja, 124,25 milhões de brasileiros cumpriram seu dever cívico e exerceram o direito de, democraticamente, eleger o presidente. E o fizeram de forma pacífica e ordeira, em contraste com a animosidade e o desrespeito demonstrados na campanha por muitos dos concorrentes, inclusive os postulantes ao cargo de chefe da nação.
O resultado das urnas pode ser interpretado como uma espécie de “preste atenção”. Um grito nacional dos eleitores dizendo que todos brasileiros desejam ser cidadãos de classe única e não mais brasileiros de segunda ou terceira classe.
Se está clara a divisão do país, esse fenômeno não pode ser entendido meramente como fruto de polarização entre direita e esquerda. É muito mais do que isso. Resulta, sobretudo, das enormes desigualdades regionais e sociais que tornaram o Brasil uma nação torta, desequilibrada e injusta, condição acentuada após a Constituição Federal de 1988.
Basta ver que o Nordeste, que responde por 18,16% do território nacional e 29,64% da população brasileira, participa com apenas 14,38% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, enquanto, por outro lado, o estado de São Paulo, ocupando apenas 2,92% do território nacional concentra 21,16% da população nacional e detém participação de 31,56% no PIB. A confirmação vem com a análise regional: Norte e Nordeste, somados, têm 38,14% da população e respondem por 63,81% do território brasileiro, mas participam com apenas 19,85% do PIB.
O resultado das urnas pode ser interpretado como uma espécie de “preste atenção”. Um grito nacional dos eleitores dizendo que todos brasileiros desejam ser cidadãos de classe única e não mais brasileiros de segunda ou terceira classe, assim definidos pelo local de nascimento ou de moradia. Esse grito de liberdade veio sobremaneira do cinturão mais empobrecido do país. A eleição foi decidida com votos da Bahia, subindo por todo o litoral do Nordeste e abrangendo também o Pará.
Foi também um grito de tolerância. A população – em decisão legítima e que deve ser respeitada – deu nova oportunidade a um candidato que jamais conseguiu dar resposta convincente aos escândalos de corrupção em seu governo e que se beneficiou da condição de “descondenado”. Essa tolerância se estendeu aos resultados de suas gestões, nas quais não reduziu as desigualdades regionais nem produziu melhores resultados de desenvolvimento humano.
O Supremo Tribunal Federal (STF) também poderia dar sua contribuição na união do país simplesmente se atendo ao disposto no texto constitucional.
Ao assumir o primeiro mandato, em 2003, o agora eleito assumiu o Brasil na 72ª posição em IDH e ao passar a faixa presidencial, oito anos depois, o país havia caído para a 88ª posição. No Coeficiente de Gini, que mede a concentração de renda nos países, praticamente não houve melhora: o Brasil passou da 6º para a 7ª pior posição entre 129 países. No IRBES (Índice de Retorno de Bem Estar à Sociedade), o país permaneceu estável na 30ª e última posição enquanto o desempenho brasileiro no PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) também não melhorou. É preciso efetivamente entregar resultados. É preciso mais compromisso do que promessas e palavras soltas, por mais bonitas que se apresentem.
A despeito de tudo isso, nova oportunidade foi dada nessa eleição. É possível, agora, responder assertivamente a esse grito de liberdade vindo das urnas, corrigindo tamanhas injustiças que castigam os brasileiros? A resposta é “sim!”. É possível e nem requer malabarismos administrativos. Basta cumprir a Constituição e conseguir que o Congresso altere, no máximo, três ou cinco artigos da Carga Magna.
Dentre as alterações necessárias está o fim da reeleição para cargos executivos, aumentando de 4 para 5 anos os mandatos de prefeito, governador e presidente da República. É também urgente alterar o foro especial por prerrogativa de função, restringindo tal instituto apenas aos chefes dos Três Poderes, a fim de reduzir a impunidade entre os ocupantes de cargos públicos praticantes de malfeitos.
Da mesma forma, o país reclama mudança legislativa para permitir o afastamento do cargo e a prisão de mandatários condenados em primeira instância e com sentença confirmada por tribunal pleno de segunda instância judicial. Além disso, é fundamental aditar a obrigatoriedade constitucional para que os candidatos a prefeito, governador e presidente apresentem formalmente, durante a campanha eleitoral, seus planos de metas com detalhamento das principais ações de governo, incluindo custo e origem dos recursos, que serão avaliados e auditados anualmente pelo Poder Legislativo e órgãos de controle externo, além de disponibilizados para a mídia e para a sociedade civil.
No mais, basta cumprir efetivamente o que dispõe a Constituição, em especial nos artigos 3º (caput e inciso III), 5º, 43, 151 (caput e inciso I), e 165 (caput e parágrafos 6º e 7º) para a correção das desigualdades regionais e sociais. Para isso, é necessário rever com urgência os gastos tributários da União que hoje consomem cerca de 4,5% do PIB, ou R$ 427 bilhões/ano. A limitação desses gastos em 1,5% ou 2% do PIB resultaria em mais R$ 237 a R$ 287 bilhões/ano para investimento nas regiões Norte e Nordeste.
Com isso, haveria mais equilíbrio na balança: hoje, 66% dos gastos tributários são destinados a beneficiários das regiões mais desenvolvidas do país, Sudeste (50%) e Sul (16%), exatamente o contrário do disposto na Constituição. E o cumprimento dos parágrafos 6º e 7º do artigo 165 da Constituição garantiria, por si só, investimentos orçamentários para as regiões mais necessitadas.
O Supremo Tribunal Federal (STF) também poderia dar sua contribuição na união do país simplesmente se atendo ao disposto no texto constitucional, e adotando menos decisões monocráticas, privilegiando as decisões do pleno da Corte. Seus integrantes poderiam ainda reduzir a exposição do tribunal, manifestando-se mais nos autos do que na mídia.
Para mitigar o desequilíbrio vigente, é indispensável fechar a fábrica de pobreza, que pune os cidadãos das classes C, D e E com a absurda e inaceitável tributação sobre o consumo, responsável por encarecer os gêneros de primeira necessidade. É óbvio, também, que uma reforma fiscal ampla – inadiável – compensará a redução da tributação sobre consumo, com aumento da necessária tributação sobre renda e capital.
O recado das urnas foi dado. Cabe agora ao eleito, dar ouvido ao que foi dito pelo povo – via voto – para tornar o Brasil um país menos injusto. Será o primeiro e decisivo passo para a reunificação da nação. Para isso, nada melhor que a plena cidadania seja acessível aos brasileiros de Norte a Sul.
Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”.
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