Duas semanas depois que um assassino percorreu 960 quilômetros para matar mexicanos no Walmart de El Paso, inúmeros membros de nossa comunidade se reuniram para oferecer solidariedade ao marido de uma das 22 vítimas, cujo funeral foi realizado neste fim de semana. Antonio Basco e Margie Reckard não tinham familiares na cidade, por isso ele nos convidou para lamentar sua perda e homenagear a mulher. Foi o que fizemos, aos milhares. Basco agora tem uma família bela e imensa em El Paso.
Esse é apenas um exemplo da atitude que as pessoas desta cidade têm e continuarão tendo, apoiando umas às outras depois da tragédia: preparando refeições, arrecadando fundos, fazendo novenas e acolhendo os que precisam de ajuda. E o faremos com a dignidade e a gentileza pelas quais somos conhecidos.
Só que isso não basta; conforme a história do massacre que nos atingiu vai sumindo das manchetes, precisamos exigir o mesmo grau de humanidade das pessoas que colocamos no poder. Este tem de ser o momento decisivo de nossa história, no que se refere ao ódio, ao racismo, às armas, à violência. O que aconteceu tem de ter um significado especial. Nossos valores têm de valer uma boa briga; do contrário, o que nos resta?
Desde o dia 3 de agosto, a vida em El Paso é um borrão de lágrimas, visitas a hospitais, luto, cirurgias, esperança, enterros, orações, vigílias, encontros. Participei de conversas que nunca sonhei em ter neste país: uma adolescente me perguntou por que as pessoas odiavam o fato de ser mexicana; um veterano da Guerra do Vietnã pediu que eu explicasse à nação que ele está sendo levado a sentir que não é norte-americano por causa de sua etnia; uma senhora de idade chorou ao admitir que teme por seus netos de pele escura.
São duas semanas tentando entender o que não tem sentido, procurando compreender como chegamos a isso.
Precisamos analisar o fundo do poço medonho em que o país mergulhou e achar um jeito de voltar ao que éramos antes
O fato de El Paso se ver no fogo cruzado das epidemias de violência armada e do ódio não é mera coincidência: o Texas tem uma das leis de armas mais frouxas do país (e em menos de duas semanas se tornará ainda mais leniente, com a nova legislação que permite o porte em igrejas, escolas e lares para menores). El Paso, uma comunidade profundamente ligada ao vizinho mexicano e nossa herança, é 80% latina, com 25% da população composta por imigrantes.
Quando a motivação do assassino se tornou clara, confesso que pensei se, em parte, ele também se estimulara devido à nossa caridade em relação aos estrangeiros.
Quando milhares de refugiados bateram à nossa porta aqui na fronteira meridional, El Paso fez o que sempre faz: acolheu os estranhos e cuidou dos vulneráveis. Preparamos refeições, arrecadamos roupas e doações, doamos dinheiro e nos voluntariamos para que a comunidade pudesse oferecer hospitalidade aos necessitados.
Em um mundo envolto pelo caos e pela divisão que se tornaram os valores-chave da presidência Trump, El Paso era um refúgio contra o ódio. Isso mudou este mês – e nossa cidade, embora ainda continue cheia de amor para dar, levará tempo para cicatrizar suas feridas.
Sabemos que, quando o atirador invadiu o Walmart com seu fuzil de assalto naquele dia, ele não enxergou os casais de velhinhos simpáticos pagando pelas mercadorias, nem os peões de obra sacando o pagamento para o fim de semana, nem os treinadores e pais entusiasmados com as meninas que arrecadavam fundos para seu time de futebol, tampouco famílias inteiras comprando material escolar para os pequenos.
Viu apenas gente de pele escura, inimigos que precisavam ser abatidos.
Não há surpresa no fato de encarar os mexicanos e imigrantes em geral de forma tão hostil; na cabeça de muita gente, fomos desumanizados pelas palavras odiosas dos analistas da Fox News e do próprio presidente – o homem que tem a voz mais forte e o palanque de bullying mais poderoso do mundo. O homem que cansou de dizer ao país que os imigrantes de pele escura são uma ameaça à segurança nacional e à nossa identidade.
O homem que nos chamou de "estupradores", "criminosos" e "animais", que disse que "trazíamos drogas e criminalidade" para o país, que retoricamente perguntou ao público presente em um comício como impedir que os migrantes atravessem a fronteira e ouviu alguém gritar "Atire neles!" sem abrir a boca.
E não são só as palavras que machucam: há a separação das crianças de suas famílias, uma política que já afetou uma geração inteira de jovens centro-americanos, e as medidas que empurram os imigrantes e requerentes de asilo para o México, levando-os o mais longe possível da segurança e dos procedimentos equitativos dos EUA.
É uma estratégia cruel.
- Trump é o muro (artigo de Jorge Ramos, publicado em 13 de janeiro de 2019)
- Trump diz que os EUA precisam de imigrantes, mas quais? (artigo de Rodrigo Lins, publicado em 11 de fevereiro de 2019)
- O ‘bullying’ de Trump não vai solucionar a crise da imigração (artigo de Ioan Grillo, publicado em 13 de junho de 2019)
Enquanto comunidades como a minha – os advogados, as ONGs, os jornalistas, os ativistas, as pessoas de boa vontade – se viram para ajudar os vulneráveis como podem, a equipe do presidente, seus asseclas no Congresso e a imprensa o aplaudem e lhe dão cobertura.
E em 3 de agosto, um dia de horror tão medonho que deveria servir de sinal de alerta para a nação inteira, esses mesmos asseclas ofereceram condolências e orações.
Mas, depois das condolências e orações, os padrões voltaram a se repetir. Trump, que horas depois dos massacres de El Paso e Dayton, em Ohio, falou grosso e sugeriu uma legislação mais rígida, acabou voltando atrás, como era de esperar, alegando que já há um número suficiente de verificações de antecedentes. Dias depois, sua campanha de reeleição defendeu o uso do termo "invasão" para descrever as famílias de imigrantes que chegam aos EUA. A seguir, o Departamento de Segurança Interna realizou uma das maiores batidas dos últimos dez anos no Mississippi, por meio do ICE, com crianças voltando do primeiro dia de aula e descobrindo que seus pais tinham sido deportados.
A seguir, veio o anúncio da nova regra que deve desencorajar os imigrantes a usar benefícios públicos como o Medicaid e os cupons de alimentação. Quando se perguntou ao diretor interino dos Serviços de Cidadania e Imigração, Ken Cuccinelli, como a nova norma se adequava ao histórico do país de receber "seus fatigados, seus pobres, suas massas encurraladas" (versos de O Novo Colosso, de Emma Lazarus, aos pés da Estátua da Liberdade), ele disse que o poema tinha sido originalmente escrito para os europeus e aqueles "que tinham condições de se manter". Inabalável quanto à reação negativa que gerou com sua releitura ignorante e ofensiva da história e da literatura, logo depois anunciou no Twitter alegremente que "o melhor ainda está por vir!"
O ódio e a violência estão destruindo os EUA, e há muitos no poder que defendem esses sentimentos, dando-lhes fôlego para sobreviver e se expandir.
Eu me encho de esperança quando penso nas pessoas como as que foram feridas pelas balas do assassino e continuam nos hospitais de El Paso se esforçando para recuperar a saúde e a força. Penso no amor que oferecem, altruísta, mesmo apesar das dificuldades. Penso nos milhares de moradores que, na noite de sexta, ajudaram Basco a lidar com sua dor. Enquanto El Paso, de luto, se reergue, a generosidade da comunidade mexicana-americana nos dará a força e o amor que precisamos preservar.
Mas, mesmo se levarmos adiante o processo lento de recuperação e reconstrução, ainda haverá muito a fazer. Se quisermos realmente honrar as 22 vidas que foram abreviadas, as dezenas de feridos e a comunidade e o país que têm de recolher os cacos e continuar, precisamos fazer um exame honesto do que levou àquele momento, e o que aconteceu desde então. Precisamos analisar o fundo do poço medonho em que o país mergulhou e achar um jeito de voltar ao que éramos antes.
Veronica Escobar é deputada democrata pelo Texas e natural de El Paso.
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