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Eleições no Chile: como o medo virou a principal arma política da América Latina

Candidatos manifestaram opiniões divergentes quando foram perguntados se fariam operações no Chile semelhantes à ocorrida no Rio de Janeiro (Foto: Elvis González/EFE)

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Enquanto o Brasil se prepara para a campanha de 2026, o Chile oferece, em novembro, um ensaio geral do que pode estar por vir. Eu decidi vir até ao Chile como observador internacional para ver de perto o desfecho das eleições de 2025. Aqui, a pauta de segurança pública não é apenas uma bandeira: é a campanha. E a direita é a protagonista dessa pauta.

Nosso vizinho sul-americano enfrenta uma disputa presidencial que é um embate direto entre a esquerda, no poder com Gabriel Boric, e a direita, que cresce com a liderança de José Antonio Kast. O governo atual enfrenta um cenário de desgaste, e com a frustração popular em alta, a crise na segurança pública se tornou a principal arma da oposição e o tema que deve decidir o futuro do país.

A esquerda chilena se viu diante de um dilema: ignorar a pauta de segurança e parecer alienada, ou adotá-la e arriscar soar artificial. Como o tema está em todo lugar, a primeira opção se tornou impossível politicamente

Para 61% dos chilenos, o maior problema do país é a falta de segurança. A percepção de insegurança reflete uma crise na capacidade do Estado de garantir a ordem pública, um pilar que historicamente era visto como sólido no Chile. O aumento da criminalidade e a presença massiva do narcotráfico em áreas urbanas cria o ambiente perfeito para que o medo se traduza em voto.

A eleição chilena é um exemplo claro de como o medo se tornou a principal ferramenta para ganhar votos. A direita, que sempre dominou o discurso de "lei e ordem", força a esquerda a jogar na defesa. Para nós, no Brasil, olhar para isso é como ver um trailer do nosso próprio futuro. E esse futuro já começou. A crise de segurança no Rio de Janeiro é a prova. A oposição de direita aproveitou a situação para martelar no governo federal, acusando-o de ser fraco ou omisso. A resposta do governo Lula foi criar uma força-tarefa, mas a comunicação foi estratégica: o foco mudou de "segurança pública" para "soberania nacional". Essa manobra mostra como a esquerda se sente desconfortável nesse debate e tenta levar a discussão para um campo onde tem mais a dizer, como a defesa do país, para fugir das críticas.

Fica claro que há um monopólio da narrativa. A direita chilena, especialmente com figuras como Kast e Kaiser, construiu um discurso sobre segurança que é simples, emocional e eficaz. A estratégia não é apenas propor soluções, mas definir os termos do problema: “a crise é de ordem”, “a causa é a imigração descontrolada e o narcotráfico”, e “a solução é a mão firme”. Essa fórmula, que tem no presidente de El Salvador, Nayib Bukele, seu exemplo mais popular na América Latina, trata a segurança como uma batalha do “cidadão de bem” contra “delinquentes”. No Chile, as ameaças existenciais ganham rosto: a imigração desenfreada e gangues como o “Tren de Aragua”, facção venezuelana que possui acordos de cooperação com o regime de Maduro e transformou o país num centro de operações.

Nesse discurso, certas ideias funcionam como verdadeiros gatilhos mentais. A promessa de 'fechar fronteiras' ou a máxima de 'não negociar com criminosos' são exemplos perfeitos. Elas criam um senso de urgência ao inflamar o medo e, no mesmo fôlego, apresentam uma solução que parece trazer segurança e controle. É uma tática que apela diretamente à necessidade de proteção das pessoas. Nessa etapa das eleições, os candidatos precisam deixar suas vontades de lado e falar sobre as dores do eleitorado, qualquer abordagem alternativa parece, por contraste, fraca ou idealista demais.

A esquerda chilena se viu diante de um dilema: ignorar a pauta de segurança e parecer alienada, ou adotá-la e arriscar soar artificial. Como o tema está em todo lugar, a primeira opção se tornou impossível politicamente. Assim, a herdeira política de Boric, Jeannette Jara passou a levantar temas como: combate ao narcotráfico, presença coordenada e blindagem das fronteiras, a um vocabulário que não é natural ao discurso progressista tradicional.

Nessa tentativa de reenquadramento, a esquerda tenta disputar o significado desses termos, associando “Estado Forte” à presença social, não à repressão. Mas essa batalha de discurso se torna difícil quando o significado já está tão consolidado. No Chile, a esquerda aborda o tema de maneira defensiva, respondendo a agenda imposta pela população, soando anti-natural, quase como encaixado às pressas na propaganda política.

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O Brasil tem muitas semelhanças com o vizinho latino: aumento da percepção de insegurança, presença de facções criminosas transnacionais, debates sobre imigração se iniciando e uma direita que já demonstrou sua capacidade de navegar na pauta de segurança pública com tranquilidade.

A grande operação que ocorreu no Rio de Janeiro sob o governo de direita de Cláudio Castro,  que deixou 121 mortos, antecipou o cenário que teremos no próximo pleito. De um lado a direita aborda a questão com maestria e cobra ações rápidas e concretas do governo federal. Do outro lado, o time de Lula, às pressas e de forma pouco coordenada, tenta mostrar trabalho sério na luta contra o crime organizado e se esforça para trazer o discurso novamente para o campo de soberania nacional, mais confortável e seguro.

O Chile mostra o que acontece quando a esquerda perde a iniciativa discursiva. Se o eleitorado brasileiro eleger a segurança pública como a pauta central de 2026, a esquerda será obrigada a jogar um jogo que não domina. A esquerda brasileira está preparada para disputar a narrativa de segurança antes que ela se torne hegemônica? Ou repetirão o erro de seus companheiros chilenos de entrarem na dança quando a música já foi escolhida?

A eleição chilena não é um evento isolado, mas um sintoma regional. O voto do medo se consolida como a principal força mobilizadora na América Latina há décadas. O Chile vota em 16 de novembro, e o Brasil, em outubro de 2026. Mas o cenário que ambos enfrentam é o mesmo: quando o medo pauta a política, quem controla a narrativa controla o poder. E a esquerda ainda não aprendeu a contar essa história.

Lucas Cerchiari é advogado e estrategista político.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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