Todos se lembram de como o mundo ficou a partir de 2020 e como os países e estados fizeram e agiram para o enfrentar a pandemia de Covid-19 sob a alegação do “respaldo” da ciência, do nosso bem-estar e da Organização Mundial de Saúde (OMS). Diante do estabelecimento de uma emergência de saúde pública, tanto nacional, quanto internacional, a maioria dos países (ou cidades e estados quando “legalmente autorizados”) incentivou e promoveu censuras, advertências, multas e até prisões como modo de combate e resposta a um microrganismo.
As pessoas tiveram suas vidas mudadas da noite para o dia não tanto relacionado à emergência viral de um novo coronavírus, mas sob o modo de enfrentamento – tirânico e nefasto – nunca visto em tamanha magnitude e escala, incluindo em países cujo modelo de governança se diziam democráticos e com passado recente de luta contra qualquer tipo de despotismo e opressão.
Caso você não fosse adepto à imposição de suas recomendações e verdades (que paradoxalmente mudavam a todo instante ou diante de situações muito peculiares e pouco científicas), se não aceitasse o que diziam ou se quer ousasse criticar, questionar e até mesmo duvidar, você era marginalizado e enquadrado como integrante dos novos e maiores inimigos do progresso, da humanidade e da vida.
E nesse combate viral valeu de tudo. A OMS e governantes puderam utilizar de uma artilharia, às vezes em conluio, outras vezes não, mas que acabaram por minar todo e qualquer respeito à dignidade humana e avanço científico. Tivemos a demora de resposta da organização e acobertamento dos erros da China em relação à origem do novo vírus – que, vale lembrar, até hoje se encontra em um campo nebuloso apesar de já se ter passado mais de quatro anos.
Também vimos a censura aos médicos chineses que estavam denunciando a crise; incentivo aos métodos draconianos de lockdowns, sem nenhum embasamento científico, apenas pelo respaldo de suas próprias palavras e de seus companheiros chineses. Além disso, houve uma “mesa redonda” entre a OMS e as principais empresas de mídias sociais e tecnologias do vale do silício para o que depois seria instituído como o que é verdade ou desinformação e “fake news” em relação à crise. e formas de enfrentar a pandemia.
Tudo isso, de forma extremamente resumida, simples e inicial naquele pesadelo para tentar enfrentar a pandemia. Mas basta apenas pensar no assunto que nos vem à mente tudo aquilo que tivemos durante praticamente três anos: idas e voltas de zonas de lockdown e do cerceamento da liberdade de ir e vir; obrigação de máscaras de forma indiscriminada; evitar aglomerações (menos nos transportes públicos ou festas político-partidárias); cancelamento e quase aniquilação de reputação de médicos e cientistas, incluindo laureados com prêmios Nobel; impedimento da autonomia médica e de tratamento de pacientes; obrigatoriedade das vacinas; passaporte sanitário etc., tudo com a justificativa de enfrentar a pandemia de Covid-19..
Mas talvez o que algumas pessoas não saibam é que tudo isso aconteceu supostamente tendo como base e pano de fundo as leis e diretrizes do Regulamento Sanitário Internacional (IHR, em inglês) estabelecido em 2005, coincidentemente, aproveitando-se do momento recente do surgimento da pandemia de SARS em 2003, da qual a OMS forneceu um quadro jurídico internacional onde foi definido os direitos e obrigações dos países (196, incluindo 194 Estados membros) na comunicação, tratamento e resposta de eventos e emergências de saúde pública que tivessem o potencial para cruzar fronteiras, uma vez que no século XXI o mundo já estava bem caracterizado e imerso em uma globalização jamais vista.
Apesar de muitos critérios técnicos e legais sobre como identificar, julgar e agir em uma Emergência de Saúde Pública, o que vale de destaque aqui para nós é que no Regulamento, conforme artigo 3º, tais critérios deveriam – inclusive na pandemia de Covid-19 – ser introduzido e estar de acordo com o “pleno respeito pela dignidade, pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais das pessoas”, tal como nos refere a Carta das Nações Unidas, introduzindo, inclusive, salvaguardas importantes para a proteção dos direitos das pessoas em relação ao aos seus dados pessoais, consentimento informado e não discriminação na aplicação de medidas de saúde. O próprio objetivo do IHR, de “prevenir, proteger contra, controlar e fornecer uma resposta de saúde pública à propagação internacional de doenças”, havia a complementação de que ele deveria ser feito de maneira proporcional e restrita aos riscos, de forma a evitar interferências desnecessárias no tráfego e comércio internacional.
Mas por que estou relatando tudo isso no passado? Porque desde 2021, os mesmos países e a OMS estão trabalhando em um pacote de propostas e sugestões de emendas no regulamento do qual “pretendem melhorar a capacidade dos países para se prepararem, detectarem e responderem a Emergências de Saúde Pública de Importância Internacional” e que estão sendo apresentadas na 77ª Assembleia Mundial de Saúde, que acontece entre os dias 27 de maio e 1º de junho. Essas propostas poderão mudar a forma de enfrentar uma pandemia.
Denominado de Grupo de Trabalho sobre Emendas ao Regulamento Sanitário Internacional (WGIHR, em inglês), junto com o chamado Órgão de Negociação Intergovernamental, também criado em 2021, o processo de emendas e atualização baseou-se nas lições aprendidas, através de vários painéis de revisão, que examinaram o funcionamento do regulamento e a arquitetura global de segurança sanitária durante a pandemia da Covid-19, uma vez que a recente crise “mostrou a necessidade de o reforçar em algumas áreas para torná-lo adequado à sua finalidade”, de acordo com o diretor-geral Tedros Adhanom.
Mas, apesar de somente saber na íntegra as propostas e o que será de fato aprovado e emendado somente após o fim da Assembleia Mundial de Saúde – afinal, foram mais de 300 propostas –, podemos cogitar e ter em mente alguns aspectos que poderão ser realidade de acordo com as palavras, atos e omissões que vimos desde 2020 na hora de enfrentar a pandemia de Covid: censuras para aqueles que não falarem a mesma língua e discurso; panos quentes para parceiros ideólogos e burocráticos dos quais se encontram nações e líderes comunistas, assassinos e tiranos; conveniência de julgamento científico que vai ao encontro aos propósitos e produtos de indústrias farmacêuticas; inadmissão de erros e má condutas, dentro e fora da OMS; falta de transparência; política acima de saúde e da medicina; e claro, mais financiamento.
Afinal, o que podemos esperar, por exemplo, de um grupo que propõe tais alterações tendo como um dos presidentes, Ashley Bloomfield, um oficial de saúde da Nova Zelândia que atuou como chefe executivo do Ministério da Saúde e diretor-geral de Saúde durante a pandemia de Covid-19, país esse que foi destaque pelo modo radical e draconiano no combate viral?
Ou então do próprio Tedros Adhanom, que como sabemos é um ex-funcionário do regime comunista ditatorial da Etiópia, do partido socialista chamado Frente de Libertação do Povo Tigraye, e que quando esteve à frente da saúde de seu país foi acusado de minimizar epidemias graves de cólera sob a mudança de nome para “diarreia aguda causada pela água”; e que também, de maneira aberta, é aliado de regimes autoritários responsáveis pelas mais diversas atrocidades e massacres como Venezuela, Cuba e a própria China.
Desde sua reeleição em 2022, Adhanom vem pedindo e lutando para que a entidade tenha mais poderes e que já chegou a dizer que para gerir as pandemias, são necessárias leis e regras que imponham obrigações aos países. “É disso que sentimos falta. E espero que os países concordem com um pacto vinculativo para que as pandemias possam ser melhor geridas", disse ele.
O que de fato significarão tais obrigações e imposições, e o que realmente poderá ser alterado no regulamento, começaremos a vislumbrar somente daqui alguns dias. Mas se mesmo com todo arcabouço e legislação dos direitos humanos, da liberdade e de livre expressão, tanto em nível nacional, quanto internacional, passamos pela pandemia de Covid-19 da forma como passamos, o que vi acontecer quando de fato houver o respaldo concreto (e não uma conveniência de escolha) de um Regulamento Sanitário Internacional que permitirá ações como “lutas contra desinformação”, tecnicismo e imposição de medidas supostamente científicas?
De fato, a pandemia de Covid-19 abriu um precedente sem igual e possivelmente a partir da aprovação das emendas do IHR teremos que temer cada vez mais o modo de enfrentamento de futuras emergências de saúde do que qualquer outro critério médico ou biológico de um novo micro-organismo. Daremos, oficialmente, as boas-vindas ao novo normal em saúde pública. Melhor dizendo,à nova ordem internacional de Saúde, tal como disse a OMS em seu 75º aniversário no ano passado.
Renato Gomez é mestre em ciências da Saúde pela Universidade Santo Amaro, enfermeiro, e especialista em infecções relacionadas à assistência à saúde pelo Centro Universitário São Camilo.
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