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Fachada do edifício sede do Supremo Tribunal Federal (STF).| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Em 1919, em plena campanha presidencial, Rui Barbosa foi impedido de falar aos baianos que o receberam às multidões em Salvador. A censura que recaía sobre ele era, como toda censura, prova em si do poder tectônico de suas ideias: Rui, um velho aos 70 anos, franzino e minúsculo em estatura, era provavelmente o homem mais perigoso da República.

De fato, ao longo de toda aquela década, Rui Barbosa se provara um subversivo. Ainda no crepúsculo das eleições de 1910, Rui passou a acusar os altos juízes da Justiça Eleitoral de um nauseante conluio com as oligarquias dominantes para fraudar as eleições e alçar Hermes da Fonseca, um homem corrupto e inelegível, à Presidência da República. Nessa toada, Rui empunhou uma só bandeira nos anos seguintes: a da necessidade de refundação do pacto político do país diante da perda de legitimidade dos poderes constituídos.

Aquele respeitável Supremo Tribunal Federal dos tempos de Rui, repleto de homens sábios que era, preferiu ficar com o conforto desconfortável da verdade.

Não faltavam, então, boas intenções – como aquelas das quais o inferno está cheio – para calar o grande Rui Barbosa. Rui era, aos olhos turvos do establishment da Primeira República, um golpista antidemocrático, que espalhava mentiras e teorias da conspiração capazes de provocar a ruína das estruturas da nação e trazer a ordem política vigente abaixo. Cerraram sobre ele, então, a grande ignomínia: proibiram o velho Rui Barbosa de falar. Rui recorreu, então, ao Supremo Tribunal Federal.

A Suprema Corte se viu em maus lençóis. O habeas corpus que se lhe apresentava tinha paciente nobre – o maior dos brasileiros, segundo Aliomar Baleeiro – e, portanto, não poderia ser varrido para debaixo do tapete sem grande escândalo. Mas, se desse permissão para Rui falar, o STF não só desagradaria às classes dominantes – inclusive aos altos juízes da Justiça Eleitoral – como alargaria o caminho para uma potencial revolução no país.

Porém, entre fatos e versões, uma verdade se impunha: a Constituição concedia ao grande Rui, e a todos os outros brasileiros, fossem quais fossem as suas ideias – certas ou erradas, agradáveis ou desagradáveis, inofensivas ou perigosas – a mais plena liberdade de expressão. Contanto que não empunhasse armas de fogo, Rui tinha o direito constitucional de lançar mão de sua arma mais letal: a palavra livre. E o Supremo Tribunal Federal sabia que, por mais antidemocráticas e golpistas que as palavras de Rui pudessem soar aos ouvidos da elite, antidemocrático e golpista mesmo era negar-lhe o uso da voz.

Também sabia a Suprema Corte que a proclamação daquela verdade que protegia Rui Barbosa separaria – para sempre – os verdadeiros democratas dos democratas de fachada; os amantes da justiça dos amantes das ideologias; os humildes dos soberbos. Porque é isso que a verdade faz: divide. Não porque isso seja da sua natureza. A verdade, em si, é inofensiva. Mas porque alguns de nós, por não tolerarmos a ousadia inocente da verdade em não se dobrar às nossas vontades, criamos um universo paralelo por meio de uma manobra quântica: a de evitar olhar para a verdade, para que as funções de onda não se colapsem e a verdade jamais passe da potência ao ato.

A verdade é moral, e por isso ocupa todos os universos possíveis, especialmente aqueles que forem criados para eliminá-la, porque, neles, ela será o pano de fundo elementar, a razão de ser, a premissa negativa sobre a qual se construirão todas as mentiras necessárias para manter aquele universo de pé.

Sim, a verdade é tão escandalosamente objetiva, tão naturalmente evidente que, embora os físicos acreditem que cada um de nós habite o seu universo particular, e muito embora 100 anos tenham se passado desde a censura recaída (e levantada) sobre Rui Barbosa, todos vocês, enquanto me leem, possivelmente estão sentindo a mesma verdade se manifestar dentro de vocês a respeito de outros fatos mais atuais.

E é por isso que esse texto é incensurável. Porque a verdade não precisa ser dita. Ela simplesmente é. E, porque é, manifesta-se apesar de nós mesmos e dos universos de mentira que queiramos criar. Não há nada que os tiranetes do mundo possam fazer a respeito disso; aliás, se fizerem, apenas confirmarão que instintivamente sabem do que estamos falando e que, portanto, estamos falando da verdade.

Aquele respeitável Supremo Tribunal Federal dos tempos de Rui, repleto de homens sábios que era, preferiu ficar com o conforto desconfortável da verdade. Concedeu ao grande Rui Barbosa o salvo-conduto para falar – e, depois que Rui Barbosa falou, o Brasil nunca mais foi o mesmo.

Hoje, se por um mero acaso vivêssemos situação semelhante, poderíamos nos perguntar: queremos estar com a verdade ou queremos dividir o Brasil em dois universos, um dos quais eternamente condenado a se reconstruir todos os dias sobre a mentira que está em sua fundação? Queremos ser verdadeiros democratas, verdadeiros amantes da justiça e humildes diante da verdade, ou preferiremos estar com aqueles que desfilam cabeças reluzentes por fora enquanto obscuras por dentro, e que têm mãos com capacidade ímpar de manipular e subtrair? E, mais importante, podemos confiar que o Supremo Tribunal Federal tem compromisso com a democracia?

Somos livres para dar as nossas respostas, mas as contrárias à verdade serão sempre antinaturais, e, por isso, nos exilarão para sempre em universos paralelos que se devem criar e recriar, incansavelmente, todas as manhãs, mas que – como os regimes de mentira do século XX bem nos provaram – invariavelmente desabarão sob o próprio peso e em cima de nossas cabeças. Então: estaremos com a verdade, ou faremos aquela letra – o H, de Hermes da Fonseca?

Gustavo Rossetto Mendes Batista é advogado.

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