"Há algo de podre no Reino da Dinamarca" (Shakespeare, Hamlet)
Um fato estranho ocorre nas compras com cartões. Se a compra é à vista, com pagamento em dinheiro, cartão de débito ou cheque, o consumidor não ganha pontos de prêmio. Se a compra é a prazo, com cartão de crédito, mesmo para pagar no vencimento do cartão, mesmo não necessitando do financiamento de poucos dias, ganha-se um “prêmio”: pontos para outras compras. Mas quem paga a conta dos “prêmios”?
Na verdade, um medonho artifício financista está montado para enganar os consumidores e retirar dinheiro da economia popular injustificadamente. Rentistas muito bem organizados, na busca de lucro fácil, estão dourando a pílula para empurrar financiamento desnecessário, ludibriando o sistema legal de proteção ao consumidor. É urgente esclarecer e aprimorar o sistema de pagamento com cartões.
É fato, as empresas de cartão de crédito, beneficiárias deste estratagema, estão festejando um espetacular aumento de 18% nas compras com cartões em 2019. Em 2018, o crescimento já foi por volta de 16%. A meta da associação das empresas de cartão é que, ao fim de 2022, 60% do consumo das famílias brasileiras seja feito por meio de cartões, sendo a maior fatia por cartões de crédito. A mídia tem noticiado esse fabuloso crescimento, dando ênfase ao sistema de pontos atrelado às compras com cartões de crédito, que permite compras de passagens aéreas e outros produtos conveniados. Têm sido comuns exemplos de compras de passagens para a Europa com pontos de cartões transformados em milhas de viagens aéreas. Presente dos deuses?
O sistema de pontos e milhas está tão aquecido que já se formou em seu entorno um mercado paralelo crescente de compra e venda de milhas, apoiado pelas empresas aéreas, empresas de cartão e intermediários. Tudo parece muito bom, por conta do incentivo e incremento casado com o mercado; entretanto, um ponto obscuro, embutido no arranjo, não tem sido exposto e adequadamente debatido.
A compra com cartões é avanço irreversível. Tem muitos pontos positivos, gera crescimento econômico, mas, com cartão de crédito, gera também superendividamento e pagamento de juros sem necessidade. Envolve o banco ou empresa emissora do cartão, o titular do cartão, a bandeira do cartão (as marcas tradicionais ou novas) e a empresa credenciadora, que contrata com os comerciantes, fornece o sistema eletrônico e a famosa “maquininha”.
As taxas que os comerciantes e prestadores de serviços pagam pelo uso do sistema chegam a 4% nas compras a crédito e 2% nas compras a débito, rateadas entre o emissor do cartão, bandeira e empresa credenciadora, além do aluguel da “maquininha”. Nas compras a débito automático ocorre apenas o pagamento de um serviço. Nas compras a crédito, mesmo que seja para o vencimento do cartão, além do serviço eletrônico, ocorre um financiamento. É importante destacar que todas as taxas (do financiamento ou do débito eletrônico) cobradas nas compras com cartão são repassadas aos preços dos produtos e serviços vendidos e, por consequência, repercutem nos demais preços do mercado, onerando todos os consumidores. Os porcentuais pequenos, na visão individual, podem parecer pouco, mas, incorporados no comércio geral, são negócio de bilionário, lucro fácil para intermediários, motivo inclusive da chamada “guerra dos cartões” ou “guerra das maquininhas”.
É certo que, na atual modernidade, não há como fugir do pagamento de alguma taxa referente ao uso do sistema de pagamento eletrônico, feito com cartão de débito. O sistema financeiro, entretanto, vem dando preferência, incentivo e atrativo capcioso para as transações com cartão de crédito porque, junto com o serviço de pagamento eletrônico, casam um financiamento, na maioria das vezes desnecessário, fazendo grande parte do consumo de bens e serviços passar pelos escaninhos financistas e deixar seu pedágio. Faz isso concedendo pontos somente para compra com cartão de crédito.
Os pontos do cartão de crédito têm por objetivo criar uma cultura enganosa e uma dependência maléfica. Depois de armada a onda e o regime de financiamento geral, fica difícil de lutar contra a corrente. É neste segmento, na compra a crédito, com financiamento por poucos dias (até o vencimento do cartão) ou por meses (com parcelamento), que ocorre o descaminho puxado pelo sistema de pontos, muito bom para os intermediários (emissor, bandeira e credenciadora), mas muito ruim para os consumidores; um golpe financista que se espraia para todo o mercado, pesando para toda a sociedade, especialmente para os mais pobres. Não é uma estratégia de mercado honesta, no sentido de eficiência para a economia nacional, porque aumenta os preços desnecessariamente.
Consumidores da classe média e alta, que não necessitam de financiamento para suas compras costumeiras, estão usando cartão de crédito, com pagamento no vencimento (16 a 30 dias de prazo), para comprar até um cafezinho na padaria. O importante é acumular pontos. Não há vantagem verdadeira para o consumidor no financiamento, pois todos os meses pagam o consumo do mês anterior. Outros consumidores, os mais humildes, não podendo pagar a compra no vencimento do cartão, usam o cartão para verdadeiros financiamentos, mas também para esses consumidores o sistema de pontos ainda causa estragos, à medida que, na ânsia de acumular pontos, essas pessoas ultrapassam o limite pessoal de pagamento, além de pagarem taxa de juros abusivas, gerando muito superendividamento.
O parcelamento em até dez meses “sem juros”, outra modalidade de enganação que também popularmente ocorre no espaço do cartão de crédito (o vendedor recebe adiantado do financiador, paga juros, embutidos no preço), também é outro artifício sinistro que arrasta também quem não precisa do financiamento, pelo prazo “gratuito” e acumulação de pontos.
Por fim, a face mais vergonhosa do sistema de pontos é a monstruosa injustiça contra a grande parcela dos consumidores pobres, que não têm como manter cartão de crédito e paga seu consumo com dinheiro, cheque ou débito imediato. Em regra, como o sistema de preços é estabilizado e a possibilidade de desconto pelo pagamento à vista é residual, ficando a critério do vendedor (pela Lei 13.455/2017), paga-se o mesmo preço de quem compra com cartão e acumula pontos.
Em resumo, a parcela mais rica da sociedade acaba tendo suas viagens aéreas, inclusive para o exterior, e outros tipos de consumo parcialmente subsidiados pelos mais pobres. É aquilo que os economistas chamam tecnicamente de “subsídios trocados”, prêmio para quem menos dele precisa, pago por toda a sociedade. Na linguagem mais humana e popular, uma maldade vergonhosa.
Por outro lado, no andar da carruagem, com o espantoso crescimento das compras por cartão de crédito, sustentado pelo sistema de pontos e ocultamento das taxas de financiamento nos preços, logo teremos a maior parte do consumo rotineiro das famílias brasileiras financiado desnecessariamente, a começar pelo cafezinho da manhã, gerando juros elevados, milhões mensais, para um reduzido grupo de financistas espertos. Verdadeiros custos improdutivos.
O professor titular do Instituto de Economia da Unicamp Fernando Nogueira da Costa, em estruturado e esclarecedor artigo chamado “Necessidade de mudança no modelo brasileiro de cartões de crédito”, após expor o crescimento explosivo da “bancarização” no Brasil, explicou que “a chamada indústria de cartões se tornou, praticamente, sócia dos valores das vendas do varejo brasileiro. Por isso, os preços, inclusive os ‘à vista’, são inflados pelo repasse do custo de vendas a prazo via cartões”, certamente alimentando o famigerado “custo Brasil”. Esse subsídio trocado, ponto de compra para os mais ricos e parte da conta para os mais pobres, fica ainda mais monstruoso quando considerada a amplitude e a profundidade da desigualdade social e econômica reinante em nosso país.
É certo que essa cultura de cortesia com chapéu alheio não vai mudar apenas por algumas críticas ou por comportamento corretivo de alguns poucos consumidores. É necessária uma atuação firme do Banco Central, Ministério Público, Procon e outros órgãos de defesa do consumidor para combater esse desacerto. Mais importante ainda é a atuação dos políticos e parlamentares, no sentido de melhor regulamentar o tema, protegendo a economia nacional e os consumidores mais pobres, fazendo com que o sistema de pontos seja suportado somente pelos que efetivamente fazem uso do cartão de crédito e se beneficiam das vantagens vinculadas, inclusive determinando constar na nota de venda o valor da taxa cobrada pelo comerciante pelo uso do cartão de crédito, assim como constam os tributos incidentes.
José Jácomo Gimenes é juiz federal e professor aposentado do Departamento de Direito Privado e Processual da UEM.
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