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Na manhã do dia 22 de novembro de 2025, a prisão preventiva do ex-presidente Jair Bolsonaro voltou a mobilizar a atenção da sociedade e do meio jurídico. Antes de analisarmos os argumentos que envolvem essa decisão, é imprescindível revisitar um ponto fundamental que, surpreendentemente, tem sido pouco explorado pela imprensa: a ilegalidade da prisão domiciliar decretada anteriormente contra o ex-presidente.
É importante destacar que não estamos tratando aqui do processo em que Jair Bolsonaro foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por suposta tentativa de golpe de Estado – condenação ainda sem trânsito em julgado. O presente texto discute a prisão preventiva, inicialmente domiciliar, decretada em outra investigação instaurada contra ele e seu filho Eduardo Bolsonaro, por suposta coação no curso do processo, que resultou no oferecimento de denúncia apenas contra Eduardo.
Sabe-se que a prisão preventiva exige, dentre outros requisitos, a existência de indícios concretos de autoria e prova da existência do crime, além da demonstração do risco gerado pelo estado de liberdade do investigado (conforme o artigo 312 do Código de Processo Penal). Em determinadas situações, a prisão preventiva pode ser decretada durante as investigações, antes do início da ação penal. Nesses casos, o investigado pode ser mantido preso por prazo curto – em regra, até dez dias (artigo 10 do Código de Processo Penal) – para evitar a detenção prolongada de pessoa presumidamente inocente, em respeito à Constituição Federal. Ao término desse prazo, o inquérito deve ser encaminhado ao Ministério Público, que tem basicamente duas opções: a) oferecer denúncia, caso existam indícios suficientes; b) arquivar ou prorrogar as investigações, se os indícios forem insuficientes.
Se não houver elementos suficientes para denúncia, a prisão preventiva deve ser imediatamente revogada, pois o requisito básico da existência de indícios não se sustenta. O raciocínio é simples e amplamente aceito: se não há indícios para denunciar, não há, pela mesma razão, indícios suficientes para manter a prisão preventiva.
Este episódio não é um caso isolado, mas um alerta sobre a importância do respeito rigoroso às regras processuais penais e aos direitos fundamentais. A lei é igual para todos e deve ser cumprida, inclusive, por aqueles que a aplicam
No caso em análise, o Ministério Público reconheceu implicitamente a falta de indícios para oferecer denúncia contra Jair Bolsonaro, já que denunciou apenas seu filho. Assim, a manutenção da prisão domiciliar contra o ex-presidente configura uma ilegalidade flagrante, contrariando a legislação, a prática forense consolidada e o princípio constitucional da presunção de inocência.
Discutir agora a conversão da prisão domiciliar em prisão preventiva em regime fechado perde o sentido jurídico, uma vez que a prisão domiciliar era ilegal desde o princípio, não podendo ser convalidada por nenhuma razão posterior (a jurisprudência do STF sempre se orientou no sentido de que a prisão preventiva é analisada segundo as razões que constaram em sua decretação originária). Logo, o ex-presidente Jair Bolsonaro deveria estar em liberdade desde o término do prazo legal para as investigações, considerando que a Procuradoria-Geral da República não ofereceu denúncia contra ele.
Sendo ilegal a prisão domiciliar com monitoramento eletrônico, todos os argumentos que sustentam sua conversão em prisão preventiva perdem fundamento. Não cabe, portanto, analisar supostas tentativas de fuga ou violações da tornozeleira eletrônica, principalmente quando a prisão original carece de respaldo legal.
A jurisprudência do STF reforça essa linha de pensamento: a fuga do investigado enquanto contesta judicialmente a legalidade da prisão não pode ser equiparada à fuga para escapar da aplicação da lei, não justificando a decretação da prisão preventiva. Sob essa perspectiva, uma suposta tentativa de violação da tornozeleira eletrônica, oriunda de prisão domiciliar ilegal, não pode ser fundamento legítimo para prisão preventiva em razão da apontada ilegalidade originária.
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Argumentos que associam a prisão preventiva à proximidade do trânsito em julgado da condenação em outro processo – o da suposta tentativa de golpe de Estado – não encontram respaldo legal. Se fosse assim, a prisão deveria ser decretada naquele processo específico, e não em investigação sem denúncia contra Jair Bolsonaro. Ademais, a lei brasileira não prevê essa hipótese como justificativa para prisão preventiva.
Quanto à convocação da vigília de oração nas proximidades do condomínio do ex-presidente, tal fato não configura, nem de longe, hipótese autorizadora da prisão preventiva. A vigília foi realizada em área pública e monitorada por agentes policiais, sem indicação concreta de risco de fuga (não se apontou nenhum indício mínimo sobre a existência de um plano real de fuga). As atividades religiosas e de manifestação pacífica do pensamento devem ser respeitadas e são protegidas constitucionalmente como exercício legítimo das liberdades religiosa e de expressão, sendo inadmissível presumir-se uma intenção de fuga a partir de atividades claramente lícitas.
Por fim, a imposição da prisão preventiva a Jair Bolsonaro motivada por atos de terceiros – no caso, outros investigados que eventualmente fugiram – afronta a exigência legal de que a prisão preventiva seja fundamentada de forma concreta e individualizada (artigos 312 e 315, §§1º e 2º, do Código de Processo Penal). Além disso, trata-se de uma falácia porque a conduta de terceiros não autoriza a presunção, por generalização (indevida), de eventual intenção de fuga do ex-presidente Jair Bolsonaro, sobretudo quando inexistem elementos concretos que indiquem isso.
Isso tudo sem falar na absoluta incompetência do STF para julgar um ex-presidente da República. Não é demais relembrar que o atual presidente da República foi, após o término do seu segundo mandato, processado na primeira instância (Operação Lava Jato). Também não vamos discutir aqui o mérito das acusações feitas ao ex-presidente Jair Bolsonaro, que já foi objeto de outras análises publicadas nesta Gazeta do Povo, temas igualmente relevantes que merecem análise separada.
Diante do exposto, conclui-se que a prisão preventiva em regime fechado, ainda que cumprida em regime especial na Superintendência da Polícia Federal, é manifestamente ilegal e abusiva. Diante disso, abre-se caminho para a denúncia da violação da liberdade pessoal do ex-presidente Jair Bolsonaro perante órgãos internacionais, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Este episódio não é um caso isolado, mas um alerta sobre a importância do respeito rigoroso às regras processuais penais e aos direitos fundamentais. A lei é igual para todos e deve ser cumprida, inclusive, por aqueles que a aplicam.
João Fiorillo de Souza, graduado em Direito, pós-graduado em Ciências Penais, mestre em Direito Público, é defensor público do estado de Alagoas e autor do livro “A iniciativa instrutória do juiz no processo penal" (ed. Juruá, 2012).
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



