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A crença de que o modo de atuação da polícia pode ser separado do contexto socioeconômico é o que se chama de falácia da autonomia. É impossível esperar que a polícia seja reformada de acordo com os princípios democráticos se o sistema político não se move na mesma direção. No entanto, a maioria dos acadêmicos e jornalistas acredita que nossa semidemocracia está no caminho da consolidação. O ocorrido recentemente no Morro do Alemão e adjacências foi um espetáculo de insegurança pública.
A literatura sobre consolidação democrática é um conceito ex post facto. Antes do golpe militar liderado por Augusto Pinochet, o Chile era considerado um exemplo de democracia consolidada – idem para a Venezuela antes da tentativa fracassada de golpe em 1992. Tal literatura concentra-se em questões clássicas como o comportamento das elites políticas no trato da coisa pública, o funcionamento dos partidos políticos, a atuação dos parlamentares no Congresso Nacional, o papel da mídia, os movimentos sociais, a reforma do Estado etc. Pouca atenção, todavia, é dada ao estudo das instituições coercitivas e de como elas contribuem para a qualidade da democracia brasileira.
A segurança pública é o braço penal da sociedade. Nela pontifica a polícia, que é um tipo particular de instituição que usa a força – daí sua visibilidade para produzir ordem definida pelos gestores da segurança pública
As mudanças que afetam a polícia passam pelas transformações institucionais do próprio Estado, que é densamente corrupto. Basta olhar para os últimos governadores do Rio de Janeiro. É impossível estudar a polícia como sendo um assunto meramente técnico, destituído de conteúdo ideológico. Pelo contrário, a polícia é, por natureza, uma instituição fortemente política. O bem coletivo que ela oferta – segurança – nem sempre é desejado igualmente pelas diversas forças sociais e pela própria polícia. A conjuntura política em que a polícia atua reflete sobremaneira no modo como esse bem público é ofertado.
Política pública é uma decisão de cunho estritamente político que visa distribuir recursos públicos escassos para aquilo que o grupo que controla o aparelho de Estado julga mais importante. A segurança pública é o braço penal da sociedade. Nela pontifica a polícia, que é um tipo particular de instituição que usa a força – daí sua visibilidade para produzir ordem definida pelos gestores da segurança pública.
A polícia faz parte de uma teia de outras instituições – como a família, a igreja, o trabalho etc. – encarregadas de manter o controle social sobre o indivíduo e/ou grupo. A polícia recruta seus membros na sociedade e, nesse aspecto, tende a espelhar as marcas estruturais das relações sociais existentes: desigualdade, injustiça e exclusão.
O Estado de Direito pressupõe a existência de segurança pública, e ela só pode florescer quando a ordem é conhecida e respeitada. Ordem no sentido de que são pessoas que convivem sob determinada forma, e não apenas um conjunto de leis. Para que o Estado de Direito Democrático prevaleça, é condição necessária a diminuição da distância entre a ordem legal formal e sua aplicação.
O governador do Rio de Janeiro não anunciou a construção de novos hospitais e/ou escolas, criação de postos de trabalho etc. Contudo, comunicou que serão realizadas novas operações policiais em outros morros da cidade. Não é deste modo que se fortalece o capital social em uma comunidade dilacerada nas suas relações sociais.
Jorge Zaverucha é doutor em Ciência Política pela Universidade de Chicago.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



