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Imagem ilustrativa.| Foto: Tumisu/Pixabay

A violência contra crianças e adolescentes é tema que gera uma comoção e indignação social. Afinal, estamos falando de pessoas em desenvolvimento, entre 0 e 18 anos, que deveriam ser protegidas no ambiente familiar. Conforme a Constituição Federal é dever da família, da sociedade e do Estado colocá-las a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A existência de leis específicas contra a violência a crianças e adolescentes não é novidade. Em 2014 entrou em vigor a Lei Bernardo Boldrini (Lei 13.010/2014), que estabelece o direito da criança e do adolescente de ser educado e cuidado sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante, reforçando e explicitando previsão nesse sentido já existente no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Em 2022, temos a Lei Henry Borel (Lei 14.344/ 2022) que cria mecanismos para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente e que entrou em vigor em 25 de maio de 2022. Para essa lei, a violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente constitui uma das formas de violação dos direitos humanos.

O texto foi expressamente inspirado no caso de homicídio que vitimou Henry Borel, ocorrido em 2021, quando o menino tinha 4 anos de idade. O crime foi imputado à mãe e ao padrasto da criança, como resultado de lesões decorrentes de agressões e maus-tratos. O texto replica mecanismos da Lei Maria da Penha, com previsões análogas, formando sistema de proteção com medidas que estabelecem obrigações a agressores e medidas protetivas de urgência para vítimas.

Como toda a novidade legislativa, além de observar os benefícios que a lei apresenta, é preciso verificar os pontos de melhoria, que demandam maior reflexão jurídica. É sempre importante ressaltar a necessidade de um olhar atento ao texto e ao contexto de aplicação da lei.

Uma abordagem exclusivamente penal e punitivista não seria suficiente e nem mesmo estaria em consonância com toda a construção legislativa em torno dos direitos das crianças e dos adolescentes

Um primeiro ponto digno de elogios diz respeito à intenção do legislador de privilegiar a construção de uma rede de atendimento em detrimento de uma abordagem exclusivamente penal. A lei contém previsões no sentido de realizar estudos para traçar estratégias, incluir o tema em currículo escolar e estabelecer novas regras, além de remeter a outras de atendimentos que consideram especificidades pelas autoridades policiais e judiciais para evitar revitimizações.

A lei, ao valorizar a rede de atendimento, apresenta como se dará a assistência a essas pessoas em desenvolvimento, referindo a importância da adoção de ações articuladas entre o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente e os sistemas de Justiça, de saúde, de segurança pública e de assistência social, os conselhos tutelares e a comunidade escolar.

A prevenção é o eixo estrutural do texto do Estatuto da Criança e do Adolescente. Diante disso, a lei ressalta a importância de criação de mecanismos socialmente úteis para promover essa prevenção e evitar danos potencialmente irreversíveis, considerando o estágio de desenvolvimento dessas vítimas, por isso a necessidade da previsão de medidas protetivas de urgência que reforçam a aplicação do princípio da intervenção precoce.

Uma abordagem exclusivamente penal e punitivista não seria suficiente e nem mesmo estaria em consonância com toda a construção legislativa em torno dos direitos das crianças e dos adolescentes. A lei está adequada aos inúmeros princípios estabelecidos no ECA, e reforça tudo que já estava expresso nele e na CF.

Todavia, colocamos algumas perguntas. Basta o texto da lei ser apenas sistematicamente adequado? Houve articulação e diálogo com a sociedade civil ou com entidades que atuam na área da prevenção à violência contra crianças e adolescentes para que estes trouxessem dados de suas vivências no tema? É possível presumir que os mecanismos previstos na Lei Maria da Penha – elaborados a partir de intenso contato com movimentos sociais de defesa dos direitos das mulheres – podem ser simplesmente replicados nos casos de violência doméstica e familiar contra crianças? A título de exemplo, vale citar que a rede de atendimento estabelecida pela Lei Maria da Penha, quando bem implementada, é fator de êxito na prevenção do feminicídio, mais do que uma punição mais gravosa para homens agressores. Mas, por outro lado, há indicadores a mostrar que esse sucesso nas ações preventivas apresentam recorte racializado, surtindo mais efeito na população de mulheres brancas do que negras. No caso das crianças e adolescentes, serão observadas especificidades de marcadores sociais como raça, gênero e origem social?

Sobre os aspectos penais, é reprovável a má técnica legislativa que insiste em usar o limite de 14 anos para identificar o sujeito titular dos direitos da norma, ao invés do critério legal do ECA, que define como criança a pessoa com idade de 0 a 12 anos, e como adolescente aquela entre 12 e 18 anos. Além disso, trata-se de mais um texto legal a empregar a surrada estratégia de inserir tipos penais na Lei dos Crimes Hediondos que, desde sua entrada em vigor, em 1990, nenhum impacto exerceu sobre os registros de crimes violentos de qualquer espécie, independentemente de aumentos no período de punição e da imposição de regimes de cumprimento de pena mais severos.

Outro ponto, de natureza criminológica, merece menção: leis que homenageiam vítimas com seus nomes tendem a construir um imaginário idealizado do tipo de vítima daquele crime; isso impacta a percepção social e das instituições no tratamento da vítima. Sem minimizar ou desvalorizar a violência sofrida por Henry, seria possível afirmar que ele corresponde ao perfil preferencial desse tipo de violência? Quais os dados disponíveis a respeito?

Ademais, na forma apresentada, o texto não prevê mecanismos para coibir a violência sofrida por crianças em situação de rua ou em instituições socioeducativas, ou mesmo para aquelas vitimadas de maneira fatal em operações policiais, manifestando a persistência da ideia de duas infâncias: uma personificada em imagens como a de Henry Borel, a merecer cuidado e proteção, e outra que se não passa despercebida em sua invisibilidade, é alvo das piores violências.

Mais de 30 anos se passaram desde o advento da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente e ainda é preciso ressaltar o compromisso em romper com a cultura da infância dividida, que permita pensar aquele período de vida de forma integrada, propondo soluções que atendam a todas as crianças.

A lei apresenta um avanço importante para a conscientização de ações e políticas de prevenção, mas o que chama a atenção é o relevo à implementação da, já constitucionalmente prevista, tríplice proteção pela família, sociedade e Estado no campo da violência contra crianças e adolescentes.

A família, com a responsabilidade de proporcionar um ambiente saudável e harmonioso ao desenvolvimento de crianças e adolescentes; a sociedade, por meio da denúncia de ações ou omissões praticadas e de um olhar atento da comunidade escolar. Por fim, o Estado, a partir da articulação dos sistemas de garantias, de Justiça, além do destaque para a atuação do Conselho Tutelar, dentre outras. Se essas três pontas funcionarem de forma coesa, as chances de uma implementação efetiva da lei tende a ser uma realidade.

Ísis Boll de Araujo Bastos e Maíra Cardoso Zapater são professoras no curso de Direito da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (Eppen), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

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