Há uma lenda de que a modelo Martha Rocha perdeu o título de Miss Universo por não desfrutar da medida exata para atender aos rigores da beleza convencional da época. Estritamente falando, sobravam duas polegadas, justo nos quadris.
Descartando o rumor não confirmado, ainda resta o fato de que por muito tempo reinou nas passarelas da moda uma padronização de beleza totalmente dissociada da elegância multiforme das ruas. Havia quem discordasse da prática excludente: a roupa que estas magrelas vestem não deveria ter bom caimento em qualquer manequim? De nada adiantavam indagações pertinentes, no próximo lançamento, só moça magra aparecia desfilando.
A discussão sobre medir ou não medir conduta humana vem lá da antiguidade, portanto bem antes das tais supostas polegadas fisicamente excedentes renegarem o título mundial da Martha Rocha.
Atualmente, a febre em medir gente se alastra, e quase toda atividade amarga seus efeitos. A diferença, é que a trena não foca mais a silhueta do corpo, agora a régua mira a alma do vivente. De atendentes do varejo a profissionais da saúde, ninguém escapa do policiamento constante. Ao comprar um carro ou demandar serviço por telefone, o cliente é requisitado a responder um questionário.
O porém é que pessoas contentes têm outras prioridades, e com isso, o estorvo de opinar recai para aqueles, que por alguma razão, estão com raiva. Estes sim, protegidos pelo manto do anonimato, com pedras na mão e sangue nos olhos, não deixarão escapar a chance da vingança deliciosa. Empregados tarimbados sabem disso. Então suplicam a cooperação de quem demonstra empatia, na esperança de ganhar nota alta. Para sair-se bem perante a vigilância permanente, imploram por algo assim: “de você, espero pelo menos um oito”. Ora, se Adam Smith atestou no século XVII que não é da bondade do açougueiro que devemos esperar nosso jantar, por que ainda depender da generosidade alheia para manter-se no mercado em pleno século XXI?
Avaliar regularmente a satisfação dos consumidores é um expediente legítimo das empresas e um instrumento essencial para nortear o rumo dos negócios, mas lançar uma enquete em cima da outra, acaba saturando a paciência do freguês. Para os avaliados a fadiga é maior, porque as organizações podem utilizar resultados obtidos via ação voluntariosa da clientela, como parâmetro para promover, ou pior, para demitir.
Cumpre confirmar: pesquisas de satisfação de clientes são fundamentais no mundo corporativo. A ressalva é que, às vezes, os resultados podem ser estimados a partir de técnicas incapazes de isolar insatisfações causadas por falha de gestão, e nesse caso, a tendência é de toda a frustração dos usuários recair nos ombros dos colaboradores que atuam na linha de frente, seja vendendo o que não foi entregue a tempo por imperícia de terceiros, seja ensinando algo cuja utilidade não é percebida de imediato, ou aplicando uma injeção, prontamente dolorida. Inclusive, em algumas atividades, como, por exemplo, num programa de redução de peso, a dificuldade do paciente em abrir mão dos desejos imediatos em benefício de necessidades futuras, pode levar os apressados a detonar profissionais competentes.
A discussão sobre medir ou não medir conduta humana vem lá da antiguidade, portanto bem antes das tais supostas polegadas fisicamente excedentes renegarem o título mundial da Martha Rocha. Em Sabedoria 11,21, livro do Antigo Testamento, afirma-se que Deus fez tudo em número, peso e medida; enunciado que estava de tal forma arraigado no senso comum do povo, que Jesus teve enormes dificuldades para convencer seus discípulos da importância de perdoar, inclusive os inimigos. Perdoar quantas vezes, queriam saber. E quanto à dimensão da ofensa, até qual gravidade seria concebível anistiar um pecador? Maldade grande, também merecia clemência? Estaria o mestre renegando a Escritura Sagrada ao relativizar a importância de tudo pesar e medir?
Diante de tanta dúvida, coube ao discípulo Pedro a tentativa de arrancar do mestre um número de bom tamanho, relevante e definitivo. Cristo foi categórico. Em Mateus 18,22 ele responde: perdoar não sete, mas setenta vezes sete. Uma das interpretações desse episódio emblemático, no qual Jesus crava remissão exagerada, é que embora reconhecendo a importância das métricas adotadas até mesmo pelo criador, às vezes, no arbítrio humano, é preferível rejeitar ponderações quantitativas.
Voltando aos dias atuais, que a Martha Rocha encontre a paz na eternidade. Quanto ao mundo empresarial, é preciso destacar: só controle não garante a qualidade. Assim, sondagem fiável requer amparo estatístico, com implementação visando melhorias de processos, inovações de produtos, em vez de apenas vigiar quem trabalha.
Florentino Fagundes é escritor e professor de Matemática da PUCPR.
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