Conta a história que Neil Young e sua banda estavam em turnê em 1989 quando tiveram um show cancelado na União Soviética. Chateado, o guitarrista teria dito “we’ll have to keep on rockin’ in the free world” (algo como “teremos de seguir tocando nosso rock no mundo livre”), uma clara referência aos Estados Unidos enquanto símbolo da liberdade no contexto da Guerra Fria. Young gostou da frase e, no dia seguinte, a letra da música estava pronta. Rockin’ in the Free World entrou para o álbum Freedom, lançado antes da queda do Muro de Berlim e que se tornou uma espécie de hino para o evento que impactou a Europa e o mundo.
Corta para janeiro de 2022. Esse mesmo artista que se consagrou como um defensor da liberdade fez uma chantagem pública ao Spotify, a maior plataforma de streaming de música do mundo (maior que as da Apple e da Amazon, segundo e terceiro lugares, respectivamente, combinadas). Os termos de Young: “Eles podem ter Rogan ou Young, não os dois”. O pedido do artista era um protesto contra o conteúdo do podcast de Joe Rogan, que, segundo ele, dissemina informações falsas sobre a vacinação contra a Covid-19 e pode causar muitas mortes.
Não se pode dizer que Rogan privilegia um tipo de visão. Mas esse não é o problema. O motivo da pressão por cancelamento é simples: Joe Rogan usa sua plataforma com liberdade
Dificilmente uma pessoa que ouça podcasts hoje não saiba quem é Joe Rogan, mas vale a pena reforçar. Joe Rogan é um comediante, comentarista de UFC e anfitrião do podcast mais ouvido no mundo, The Joe Rogan Experience. Cada episódio tem a média de 11 milhões de ouvintes – mais do que o dobro de ouvintes por mês do artista Neil Young em todas as suas músicas no Spotify. Rogan é também uma persona non grata para a ala progressista nos Estados Unidos e para quem se identifica com esse posicionamento no mundo inteiro. Dois episódios especificamente foram alvo de críticas, em que Rogan entrevista o cardiologista Peter McCullough (episódio #1.747) e o médico bioquímico Robert Malone (episódio #1.757), com opiniões negativas sobre a vacinação contra a Covid-19. Vale dizer que, antes disso, Joe Rogan também recebeu em seu podcast os médicos Sanjay Gupta (episódio #1.718) e Michael Osterholm, que fez parte do conselho consultivo especial sobre Covid-19 do presidente Joe Biden (episódio #1.439), ambos favoráveis à vacinação.
Definitivamente não se pode dizer que Rogan privilegia um tipo de visão. Mas esse não é o problema. O motivo da pressão por cancelamento é simples: Joe Rogan usa a plataforma com liberdade. Para Young e seus apoiadores (famosos e anônimos), a liberdade não quer dizer, ao pé da letra, liberdade. Para eles, a liberdade vem curiosamente algemada em uma condição: liberdade para quem concorda.
A boa notícia é que o Spotify não cedeu. Entre um artista decadente – que deve estar gostando da projeção da polêmica, por sinal – e o podcaster mais famoso do planeta, a escolha óbvia se confirmou. Sai Young, fica Rogan.
Uma curiosidade: Rockin’ in the Free World foi usada em 2015 e 2016 na campanha de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos. Young, que apoiava Bernie Sanders, não ficou nada feliz com o uso da música na campanha do republicano. Talvez Neil Young um dia possa suspeitar que a liberdade que ele defende não é, de fato, liberdade. Enquanto isso, pelo menos por enquanto, he’ll have to keep on rockin’ in the free world.
Flávia Sato é graduada em Comunicação Social, pós-graduada em Mindful Leadership pela New York University e em Gestão Emocional nas Organizações, e associada ao Instituto de Formação de Líderes de São Paulo.
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