O ordenamento jurídico brasileiro possui inúmeros problemas, mas (pelo menos até a alteração promovida pela Lei 14.532/23, de autoria de Paulo Paim do PT e sancionada pelo presidente Lula) a Lei 7.716/89, a Lei do Racismo, sempre esteve dotada do caráter objetivo necessário para se confrontar um problema real (o racismo) preservando-se a segurança jurídica brasileira. A lei, de autoria do já falecido deputado Carlos Alberto Caó de Oliveira, do PDT, e sancionada por José Sarney, foi vitimada por inúmeras alterações, nem todas elas com o condão de aprimorar a eficácia da norma. Esta última alteração, por exemplo, equiparou a injúria racial (de ação penal privada, de menor gravidade) ao racismo (de ação penal pública, inafiançável, imprescritível), de modo que, a depender da companhia, uma piada ou um apelido pode levar o autor a sérios problemas jurídicos. Nem precisamos mencionar a dilapidação da norma pelo ativismo judiciário, que recentemente transformou a “transfobia” em racismo.
Mas devemos insistir que, em sua origem, ela é útil e necessária na perspectiva da preservação da unidade e harmonia nacionais em um país notório por sua diversidade racial e étnica e por um passado de relações raciais complexas envolvendo escravidão, miscigenação, conflitos, hierarquias sociais, etc. O art. 20, da referida lei, tipifica da seguinte forma o crime de racismo: “Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Na aplicação dessa norma, os juízes foram classicamente guiados pelo conceito de racismo, definido pelo Dicionário Houaiss como “o conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre as raças e etnias. É uma doutrina ou sistema político fundado sobre o direito de uma raça (considerada pura ou superior) de dominar as outras. Por fim, é um preconceito extremado contra indivíduos pertencentes a uma raça ou etnia diferente, considerada inferior”.
Essa tese do racismo estrutural é qualquer coisa, menos científica. Ela não pode ter sua existência impugnada empiricamente, porque se apoia em uma petição de princípios.
Aos que talvez não se satisfaçam com uma “definição de dicionário”, poderíamos acrescentar que até pouquíssimo tempo o conceito clássico de racismo como a hierarquização de raças (ou etnias) também era consenso nos julgados dos tribunais, na doutrina jurídica ou mesmo em cartilhas do governo, como a cartilha Cidadania Para Todos, publicada pela UFPB em parceria com o Ministério da Justiça, de 1998, ou o Programa Brasil, Gênero e Raça, do Ministério do Trabalho e do Emprego, de 2006.
Poderíamos citar também a definição do filósofo italiano Norberto Bobbio, exposta na compilação de escritos morais Elogio da Serenidade e muito comumente usada em julgados sobre o tema: “Para que se possa falar de ideologia (ou teoria) racista, são necessárias as seguintes três condições, que podemos definir como os postulados do racismo como visão de mundo: 1. A humanidade está dividida em raças diversas, cuja diversidade é dada por elementos de caráter biológico e psicológico, e também em última instância por elementos culturais, que, porém, derivam dos primeiros. Dizer que existem raças significa dizer que existem grupos humanos cujos caracteres são invariáveis e se transmitem hereditariamente (…). 2. Não só existem raças diversas, mas existem raças superiores e inferiores. Com essa afirmação, a ideologia racista dá um passo avante. Mas fica diante da dificuldade de fixar os critérios com base nos quais se pode estabelecer com certeza que uma raça é superior a outra (..).3. Não só existem raças, não só existem raças superiores e inferiores, mas as superiores, precisamente porque são superiores, têm o direito de dominar as inferiores, e de extrair disso, eventualmente, todas as vantagens possíveis (...).”
Por sua vez, o filósofo francês Alain de Benoist, após resumir os vários postulados das teorias do racismo, sintetiza o debate da seguinte forma em seu ensaio O Que é o Racismo: “A questão é se é possível inferir racismo quando (e apenas quando) todas esses traços teóricos estão presentes, ou se há alguns elementos mais ‘fundamentais’ do que outros. O primeiro ponto é que, acima de tudo, o racismo é uma teoria da hierarquia racial e da desigualdade racial. Isto é o fundamental”.
O único branco bom, portanto, é aquele que luta contra a “branquitude”, que se “deseuropeíza”, que promove o “empoderamento negro”.
Hoje as coisas já não estão tão bem demarcadas. A Lei do Racismo já vinha sendo relativizada desde os anos 90, quando se passou já de uma noção mais ou menos sociobiológica do racismo, para uma puramente sociocultural, ou seja, do racismo como qualquer forma de hierarquização entre “grupos sociais”; os tais “grupos sociais” em questão podendo corresponder a literalmente qualquer coletividade de indivíduos mais ou menos caracterizáveis em termos antropológicos e sociológicos. Imagino que os ministros do Caso Ellwanger, certamente não devem ter previsto que no futuro se debateria seriamente a possibilidade de enquadrar a “gordofobia” e o “etarismo” como formas de racismo, com a mesma pena que a prevista para o antissemitismo ou o ódio a negros.
Mais dano ainda foi causado pela influência da “teoria crítica da raça”, uma corrente extremista de estudos raciais de orientação progressista e pós-moderna, que advoga a tese de um “racismo estrutural”. Ou seja, mesmo onde não há racismo em um sentido objetivo, ou seja, a hierarquização, a subjugação, a ofensa, a inferiorização praticada por uma pessoa ou grupo, contra outra pessoa ou grupo, o racismo ainda está presente desde que aquela sociedade tenha sido construída, ainda que no passado remoto, pela dominação de uma raça por outra e essa dominação ainda tenha repercussões nas mãos diversas áreas.
Essa tese do racismo estrutural é qualquer coisa, menos científica. Ela não pode ter sua existência impugnada empiricamente, porque se apoia em uma petição de princípios. Desde que tenha havido conquista, dominação, exploração e/ou escravização de um grupo étnico-racial por outro como parte da construção das instituições em priscas eras, qualquer diferença social verificável hoje pode ser atribuída ao “racismo estrutural”. E não é que o racismo possa, também, se verificar dessa forma difusa, psicologizante e mística. A posição militante dos adeptos da “teoria racial crítica” é que SÓ nas condições do “racismo estrutural” se pode falar em racismo e ele é SEMPRE unívoco, sempre praticado pelos herdeiros “privilegiados” desse período de dominação de séculos atrás (sim, entre os herdeiros “privilegiados” devem ser incluídos, para a “teoria racial crítica”, mendigos brancos) contra as suas vítimas históricas.
A posição militante dos adeptos da “teoria racial crítica” é que SÓ nas condições do “racismo estrutural” se pode falar em racismo.
Introdução extremamente longa, mas necessária, para chegarmos ao ponto que queríamos apresentar: se tomarmos a definição clássica e consagrada de racismo, ainda vigente na maior parte do mundo, e resgatá-la para fazermos uma leitura sobre como se administra a justiça em questões raciais no Brasil hoje, a única conclusão que podemos tirar é que há racismos e “racismos”. Condutas racistas, discriminação, desumanização, hierarquização, inferiorização, demonização, que sempre foram facilmente identificadas e juridicamente punidas de forma isonômica, hoje podem se ver isentas de punição caso a vítima seja branca. E aqui gostaríamos de lançar mão de um exemplo, entre muitos outros possíveis.
Na rede social Instagram, podemos encontrar a página de uma organização sem fins lucrativos chamada Observatório da Branquitude. Essa organização se apresenta como uma “iniciativa da sociedade civil dedicada a produzir conhecimento, incidência e comunicação sobre a branquitude”. As postagens da página nos permitem ter um vislumbre da cosmovisão compartilhada entre os seguidores da ONG em questão. Segundo a sua narrativa, haveria uma hierarquia racial invisível no Brasil, com a branquitude sendo esse “lugar de privilégios” construído como a posição mais elevada nessa hierarquia.
Condutas racistas, discriminação, desumanização, hierarquização, inferiorização, demonização, que sempre foram facilmente identificadas e juridicamente punidas de forma isonômica.
A primeira reação óbvia é a de repetir a crítica, legítima, sobre como tudo nesse projeto (começando pela tal “branquitude”, mera tradução do “whiteness” dos “estudos raciais” das universidades dos EUA) é mero transplante de um “saber” (como a intelligentsia pós-moderna gosta de dizer) evidentemente importado, neocolonial, construído segundo a realidade específica dos EUA (e, mesmo lá, passível de críticas e questionamentos).
Ora, o Brasil não é birracial e nunca o foi, ao contrário do que essa ONG e todas as outras ONGs de “estudos raciais” no Brasil pretendem mistificar. A hierarquia social do Brasil colonial era um emaranhado de ambiguidades e paradoxos aparentes, típicos de uma miscigenação orgânica e natural presente já desde o começo da construção do Brasil. Nessa construção narrativa do Observatório da Branquitude, onde ficam os caboclos, os mulatos, os cafuzos, os mamelucos, ou então as imigrações de várias partes do mundo? Qual é o lugar dos judeus brasileiros nessa narrativa bicolor? A complexidade da história brasileira abarca de escravos brancos (tanto imigrantes escravizados por dívidas, como brancos filhos de escravas mestiças que herdaram a condição de escravo) a barões negros proprietários de centenas de escravos, como o Barão de Guaraciaba. No Brasil, a escravidão era tão difundida que mesmo um escravo podia ser dono de outros escravos e não havia impedimento para que um negro (livre ou escravo) fosse “dono” de um escravo mestiço. O Brasil teve, ainda, desde o começo caboclos e mestiços em geral em posições de poder nas capitanias. Algumas famílias brasileiras importantes, como os Albuquerque, traçam suas linhagens a um patriarca português e uma matriarca indígena.
A teoria crítica da raça intensifica essa percepção de racismo. Afinal, ela transforma o racismo em monopólio branco.
Agora bem, para além da complexidade que passa despercebida por quem projeta em nosso passado o Mississipi e em nosso futuro uma Revolução Haitiana, o problema é que o “Observatório da Branquitude” bem poderia ser considerado racista em um sentido clássico. Basta analisarmos melhor as postagens.
Que tal essa: “Quem ameaça a democracia é a branquitude”. Outra postagem, dá uma estatística sobre quantos do alto oficialato brasileiro seriam brancos, traçando uma conexão entre militares, ameaça à democracia e “branquitude”. Alguém consegue imaginar, primeiro, um Observatório da Negritude? Mais, um Observatório da Negritude manejado por “intelectuais brancos” e dedicado a “problematizar a negritude” apelando a estatísticas possivelmente desfavoráveis aos negros para inferir que a “negritude” poderia ser uma ameaça ao sistema político?
Qualquer coisa desse tipo, especialmente pelo subtexto separatista, seria claramente categorizada como racismo já em qualquer período dos anos 90, caso se invertessem os fatores raciais da equação. E isso seria inegável. A democracia sendo um dos máximos valores do sistema político, jurídico e cultural do Brasil de hoje, a ideia de que existiria alguma escala racial de “ameaça à democracia”, com os brancos representando a principal ameaça e outros grupos sendo “mais democráticos”, bastaria para caracterizar o racismo.
A teoria crítica da raça intensifica essa percepção de racismo. Afinal, ela transforma o racismo em monopólio branco e com o racismo sendo visto como “máximo desvalor” nas sociedades contemporâneas ocidentais, coloca o “eterno racista” (todos os membros da “raça branca”, incluindo crianças inocentes) fora da civilização, fora da “humanidade”. A “branquitude” é uma marca maldita, uma culpa ancestral, que não pode ser limpa e sempre pesa sobre os ombros daquele que é seu portador.
É, claro, o portador dessa marca maldita da “branquitude” pode tentar aliviar a sua “culpa ancestral” por meio de atos que, especificamente, promovam a “inversão das relações de poder”, abraçando o etnomasoquismo. Diante de toda situação em que, segundo ONGs como o Observatório da Branquitude, se estiver diante de um conflito entre “interesses raciais”, o “bom branco” deve se colocar contra “os seus”. O único branco bom, portanto, é aquele que luta contra a “branquitude”, que se “deseuropeíza”, que promove o “empoderamento negro”. Desnecessário dizer que a probabilidade desse etnomasoquismo degringolar em uma fetichização racial de contornos sexuais é alta.
Como olhar para essa estigmatização sem concluir, necessariamente, que trata-se de racismo? Uma parte considerável do Judiciário (incluindo o STF) não entende dessa forma, porém. Em uma sentença em que se absolvia um negro que havia pregado separatismo racial em redes sociais, com base em narrativas eugenistas de linha afrocêntrica, o juiz federal João Azambuja, comenta: “Evidentemente que a proteção constitucional, instituída ao longo do tempo, visa essencialmente a proteger minorias discriminadas em função de sua raça, etnia, orientação sexual ou identidade de gênero, mas especialmente negros e índios”. Nem todos, portanto, estamos ao abrigo da Constituição. Aparentemente, há cidadãos e “cidadãos”. Agora bem, a pergunta de maior interesse para muitos: quem paga a conta?
A “branquitude” é uma marca maldita, uma culpa ancestral, que não pode ser limpa e sempre pesa sobre os ombros daquele que é seu portador.
Algumas postagens do Instagram da ONG apontam que "O Observatório da Branquitude conta com apoio do @iibirapitanga para sua estruturação e desenho estratégico”. Trata-se do Instituto Ibirapitanga. O site da ONG (observatoriobranquitude.com.br) confirma o Instituto Ibirapitanga como único apoiador (revelado). Projetos específicos do Observatório contam com outras parcerias, como o Projeto SETA, o Alma Preta Jornalismo e o Instituto Serrapilheira, mas o único financiador consistente parece ser mesmo o Instituto Ibirapitanga.
O Instituto Ibirapitanga, em seu site se apresenta como “uma organização dedicada à defesa das liberdades e ao aprofundamento da democracia”, tendo como seus eixos principais “sistemas alimentares” e “equidade racial”. A aba de doações, que é o que nos interessa, informa que o Instituto Ibirapitanga doou 160 mil reais em 2021 para a finalidade de “estruturação do Observatório da Branquitude” e mais 400 mil reais em 2022 para “combate ao privilégio racial branco a partir da produção de conhecimento”. Mais de meio milhão de reais para essa ONG não é pouca coisa, mas aparentemente há vários outros projetos semelhantes que receberam ainda mais doações. Então quem está por trás do Ibirapitanga e está distribuindo tanto dinheiro?
O que leva bilionários, entre banqueiros, financistas, industriais e burgueses-boêmios a investir em programas e ONGs de “luta por direitos sociais”?
Bem, segundo as informações do próprio site, o Instituto Ibirapitanga possui um fundo de investimentos, que seria o responsável pelas transferências de recursos. O informe financeiro publicado em 2021 sobre a situação financeira do Instituto até dezembro de 2020 (não encontramos informe financeiro mais recente) aponta como associados fundadores o cineasta Walter Moreira Salles Júnior e a São Vicente Representações e Participações Ltda. Exceto pela presença no informe financeiro do Instituto Ibirapitanga, não foi possível descobrir qualquer informação sobre essa São Vicente. Quanto ao associado “pessoa física” é mais fácil comentar: Walter Moreira Salles Júnior é o premiadíssimo diretor de Central do Brasil, Diários de Motocicleta e mais tantos outros filmes. Mas talvez seja aqui mais relevante comentar que ele pertence ao tradicional clã bancário brasileiro dos Moreira Salles.
Seu avô foi o fundador do Banco Moreira Salles, que em 1975 passou a se chamar Unibanco. Seu irmão Pedro Moreira Salles é o atual presidente do Conselho Administrativo do Itaú Unibanco, o 46º maior banco do mundo. Outro irmão, João Moreira Salles, é o fundador da Revista Piauí, de orientação liberal-esquerdista, e do já citado Instituto Serrapilheira. O meio-irmão Fernando Moreira Salles, por sua vez, é sócio do grupo editorial Companhia das Letras. Não são, certamente, representantes do proletariado ou do campesinato.
O fundo patrimonial possuía um ativo total de R$ 415,2 milhões, a maior parte desse montante sendo composta de títulos e valores mobiliários, rendendo juros. Os investimentos do fundo são geridos pela empresa Brasil Warrant, que no passado esteve ligada aos Rothschild, mas que desde os anos 50 pertence aos Moreira Salles. Os investimentos do fundo do Instituto Serrapilheira, também multimilionário, são geridos pela mesma empresa e pela mesma equipe.
O Conselho de Administração da Ibirapitanga é um dream team do progressismo ongueiro e de adeptos das pautas ESG, contando com figuras como Ricardo Abramovay, grande pesquisador da bioeconomia e da Amazônia (e, também, pai do Pedro Abramovay que dirige a Open Society na América Latina), Luiz Orenstein, sócio-fundador da Dynamo que é um dos fundos especulativos mais antigos do Brasil, Sueli Carneiro, que é coordenadora executiva do Instituto Geledés, entre outros. Os vínculos com a Open Society não se resumem à família Abramovay. O Instituto Ibirapitanga se uniu à Fundação Ford e à Open Society para financiar o Programa Marielle Franco do Fundo Baobá (criado pela Fundação Kellogg), cujo objetivo é treinar “lideranças femininas negras”.
Agora, sabendo do que se trata todo esse antirracismo racista e quem o financia, o que leva bilionários, entre banqueiros, financistas, industriais e burgueses-boêmios a investir em programas e ONGs de “luta por direitos sociais”? Será puro altruísmo? Seriam os bilionários “marxistas culturais”? Ou será que eles sabem que essas e outras pautas caras ao progressismo pós-moderno de esquerda promovem a desintegração do tecido social, tornando os homens presas mais fáceis do turbocapitalismo, do consumismo e de todos os tipos de projetos de engenharia social do Grande Capital?
Raphael Machado é jurista, editor, analista geopolítico e presidente da associação Nova Resistência.
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